sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

O velho mal do novo mundial

A minha opinião acerca do projecto de alargamento do Mundial de futebol - e do futebol contemporâneo, de um modo geral. Publicado originalmente na GQ Portugal.

"Está aí o projeto para a americanização definitiva do futebol, no sentido de o transformar em desporto de consumo light, como o são o basebol ou o futebol americano, tornando o soccer ainda mais plástico, superficial e desprovido de paixão e romance do que já está, circunscrevendo-o a desporto de arena para ser observado enquanto se come pipocas na bancada ou diante de qualquer dispositivo de imagem.

O presidente da FIFA, Gianni Infantino, apresentou na segunda-feira um alargamento do Campeonato do Mundo de seleções para 48 equipas, em vez das 32 atuais, a partir de 2026.

Para quê fomentar a paixão e a exigência se podemos entreter as classes privilegiadas durante mais tempo, com bilhetes mais caros e vender mais jerseys com nomes de craques, não é? A tendência não nasceu anteontem e não foi o infeliz Infantino quem inventou o vírus que vai consumindo o futebol moderno.

Faço aqui um parêntesis para tentar situar o tal futebol moderno. Depois da fundação da UEFA e da implementação das competições europeias de clubes, época que podemos classificar como a idade dourada do futebol – expoente do romantismo futebolístico e a era em que o belo-desporto se tornou definitivamente rei -, entrámos numa fase ambiciosa de crescimento. A expansão do fenómeno a territórios que não são naturalmente fanáticos desta nossa bola constitui aquilo a que podemos chamar de futebol moderno.

O Mundial de Itália, em 1990, terá sido o último estertor da segunda idade – essa tal que é dourada – do futebol. No ano seguinte, a versão experimental da Liga dos Campeões era o prenúncio do fim da era. Não nos esqueçamos também do facto de haver novos países nascidos do fim da URSS e da Jugoslávia, o que acabou por fornecer matéria-prima adicional para esta expansão de competições. Demos por nós em 1994 a jogar um Mundial nos Estados Unidos em relvados estranhos e em estádios concebidos para outros desportos, repletos de público na sua maioria incapaz de distinguir um fora-de-jogo de uma entrada de pé em riste. Concordemos em estabelecer 1994 como o começo oficial do futebol moderno.

Daí em diante, assistiu-se a um desvirtuamento quase total de algumas das essências do jogo, a começar pelo que são as equipas. O que é hoje uma equipa de um clube? Ainda no outro dia eu ouvia o brilhante Antonio Conte queixar-se de que era indecente o que os chineses andam a fazer, gastando alarvemente milhões de dólares para comprarem, na Europa, jogadores que são famosos mas que não valem um décimo daqueles valores. Achei graça porque Conte é o treinador do Chelsea, clube detido por um magnata do petróleo russo que comprou não só o clube como tudo quanto mexia e falava português em 2004, por exemplo, e por valores muito superiores ao esperado.

Ou seja, isto de fazer equipas plásticas com dinheiro fresco ainda a cheirar a ouro negro (ou de outras cores e diferentes proveniências) não é uma coisa de agora. É por isso que olhar para as equipas dos anos oitenta me causa tanta nostalgia. Os clubes tinham culto, tanto nas bancadas como no balneário. Já havia dinheiro, claro, e os mais ricos tinham vantagem natural, mas era assim no futebol como o era em todos os outros aspetos da vida contemporânea.

Hoje, a discrepância atinge o nível do insulto – em Inglaterra, por exemplo, uma equipa da segunda divisão, é capaz de gastar 80 ou 90 milhões de libras em contratações de pré-época, coisa que nenhum dos clubes grandes portugueses é capaz de gastar numa só época – se calhar, nem os três juntos gastam tanto dinheiro. É apenas um exemplo, mas haverá mais e igualmente ofensivos.

Olhamos em redor e os miúdos tendem mais a ser adeptos dos Cristianos Ronaldos e dos Messis do que de um clube em particular – e estes dois super-jogadores até são bons exemplos de lealdade aos seus clubes. Se pensarmos no contemporâneo Axel Witsel ou, em versões mais vintage de craques, em Kluivert, por exemplo, verificamos que não passam de trota-mundos que dão o seu espetáculo como os saltimbancos de antigamente, assentando arraiais ora aqui, ora ali, e cobrando bilhete à população local pela sua dose de entretenimento. Fazem-no com zero por cento de apreço pela camisola que vestem e medida semelhante de paixão pelo clube que defendem. E não são os únicos e não se pode culpar apenas os jogadores por se ter chegado a este ponto. Se os próprios clubes cultivam mais o comércio do que a paixão ou se o têm de fazer para conseguir sobreviver num mundo em que os gigantes opulentos do futebol compram tudo o que lhes apetecer, que moral há para que se exija lealdade e amor à camisola aos jogadores?

Este futebol de agora vai triturando o futebol sentimental que conhecíamos em troca dos milhões das audiências e de estádios tão asseados quanto assépticos, concebidos à medida de quem tem dinheiro para ir à bola como quem dantes ia à ópera.

O Mundial de 48 equipas, que Infantino justifica ridiculamente com a democratização do acesso à competição porque “há muitas equipas que nunca lá chegaram”, não passa de uma farsa futebolística. Num desporto de alta competição, baixar-se a fasquia quando tantos lutam para se superar todos os dias é um absoluto ultraje.

Mas tudo bem, vamos ter 80 jogos em vez dos atuais 64. Um terço desses jogos não terá a menor qualidade, o mais pequeno interesse. Porém, com certeza haverá quem possa pagar mais bilhetes de ópera para se sentar nas cadeiras acolchoadas a comer pipocas."

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