quarta-feira, 15 de junho de 2016

Bom jogo de cabeça: Portugal - Islândia

Tenho lido e ouvido por aí coisas que acho disparatadas ou erradas ou, no extremo, ignorantes acerca do Portugal - Islândia. Os equívocos são vários e revelam uma vasta panóplia de deficiências no processamento de um jogo de futebol, primeiro, e na reflexão sobre o mesmo, depois.

O entusiasmo nacional-ronaldista e a certeza de que somos, à imagem de Ronaldo, aliás, os melhores, mais bonitos, mais fortes, mais espertos, mais rápidos e, no fundo, mais melhores de todos só pode ser justificado com a nossa percepção equivocada do futebol. Para começar, há uma noção fundamental que é conveniente adquirirmos: existe um adversário em cada jogo. Sim, é espantoso e, na maior parte das vezes, até desnecessário porque acabamos quase sempre por ganhar. Mas a regra diz que é assim e que tem de estar lá alguém a fazer de adereço para que Ronaldo possa talentosa e fabulosamente contornar todos os pinos humanos, voltar para trás e disparar um míssil a 365 quilómetros por hora a 57 metros da baliza com a bola a ir ao ângulo. Isto, umas sete ou oito vezes por jogo.

O treinadorismo de bancada também não está em grande forma. Dantes, um simples "epá, isto em 4-4-2 não vai lá, tem de ser em 4-3-3" ou o mais pensado "tirava o Nani e metia o Quaresma" bastariam para contestar Fernando Santos, homem praticamente inexperiente nisto do futebol e que, por deficiência sensitiva ou cognitiva, não consegue ver que Quaresma está ali, mesmo ao lado e quando, ao fim de quase 80 minutos, repara no craque, bate com a mão na testa e diz "epá, estavas aí... que porra, pá. Podias estar lá tu em vez do Nani, merda para isto e para as minhas cataratas". Mas desde que Freitas Lobo introduziu as basculações, as transições, a intensidade e a segunda bola neste desporto que, na sua origem milenar, sempre foi disputado por duas facções tentando levar um e um só objecto até à torre de menagem da facção opositora, dizia que eu que Freitas Lobo tinha de vir com esse novo palavreado para complicar o assunto e agora, em qualquer balcão de qualquer café, ouvimos qualquer um dizer, muito senhor de si, que "estamos a circular mal a bola". Assim não vai dar.

A verdade é que a nossa tendência crítica é muito manca devido, sobretudo, aos dois motivos acima mencionados e que, no fundo, são só um: excesso de entusiasmo connosco mesmos. Somos um povo arrogante. Normalmente não falamos no assunto porque não gostamos de ter noção de uma série de coisas, incluindo dos nossos próprios defeitos. Mas somos. E foi mesmo por aí que Portugal deitou fora dois pontos, que não eram nem preciosos nem fundamentais, mas que até seriam justos.

Portugal jogou bem. Não jogou bem o jogo todo, até porque lhe perdeu o controlo e lhe soltou as rédeas a partir de um certo ponto. Mas jogou bastante bem. Depois de uma investida venenosa, a frio, em que a Islândia podia ter marcado, os portugueses assentaram jogo, definiram estratégias e chegaram à baliza adversária muitas vezes e com perigo, ao mesmo tempo que a Islândia não conseguia qualquer iniciativa atacante digna desse nome. Isto durou dos 8 aos 45 minutos e foi avassalador. Criámos cerca de 15 oportunidades de remate, umas 5 ou 6 claramente para golo. Fizemos mais de 500 passes com uma taxa de aproveitamento acima dos 85%, pelo que, enfim, lá se vai a teoria da circulação de bola daquele senhor de bigode e faces rosadas. E ganhámos praticamente todos os lances aéreos antes do intervalo - temos de exceptuar os patéticos cruzamentos para a pequena área, invariavelmente arrumados nas mãos do guarda-redes. Recolhemos ao balneário a merecer ganhar, sem dúvida, mas a ganhar por muito pouco ainda.

Aparentemente, ninguém do lado português ligou nenhuma ao assunto. Ninguém leu o jogo e sublinhou o que tínhamos feito de melhor e eles de pior. É que, se o tivéssemos feito, teríamos sabido o que eles tentariam corrigir. E teríamos estabelecido uma contra-resposta. Mas não, somos Portugal, temos o Ronaldo, estamos a merecer ganhar e eles vão levantar a bandeira branca aos 5 a 0 e pronto, vai tudo para casa. Esquecemo-nos que a Islândia já não é composta por padeiros e malta da faina do mar, eles também têm jogadores profissionais. Não são do Real Madrid, mas são de futebol de alta competição. E, se são de alta competição, é porque alguma competência eles hão-de ter. E se eles tiverem um treinador que, antes deste jogo, já sacou três empates em quatro jogos contra Portugal, então configura-se aqui aquilo que, com azar, pode vir a ser o chamado "bico d'obra".

Regressámos então para a segunda parte com a inabalável confiança lusitana e a soberba, certamente genuína mas, ainda assim, desagradável, de quem tem, não me canso de o repetir, Ronaldo. Ronaldo diz-se Rónáldo em momentos de grande exaltação nacional e fervor patriótico. Acredito que há 600 anos, às portas de cada batalha, o povo também admitisse perante as câmaras que o seu favorito e o melhor do mundo e aquele que iria aviar os espanhóis todos era o Nónálvares. Nónálvares era o craque, era o melhor e o que colecionava hat-tricks de cabeças castelhanas. Temos sempre alguém que é o máiór nestas situações. Voltaram então Rónáldo e os amigos para, enfim, trocar a bola enquanto matavam o tempo até à vitória decretada pelas bancadas, pelos comentadores, pelo próprio Rónáldo, por várias pessoas à porta do estádio e, admito, por mim próprio, quando a Islândia comete a deslealdade de alterar a estratégia e de nos tirar a bola. Como é que eles fizeram isso? Ninguém viu? Foi simples, impediram-nos de jogar pelo chão - aumentaram a pressão a um ponto incrível - e não nos deixaram ficar com as bolas pelo ar. Mas como, se na primeira parte ganhávamos todos os lances aéreos? Danilo, Pepe e Carvalho estavam imperiais e já não estamos no tempo em que o português médio tem um metro e cinquenta e picos ao passo que os vikings chegam com dois metros e catorze, fora o capacete com os cornos. Agora mede tudo o mesmo. Sucede que os islandeses descobriram que, empurrando os portugueses para fora do espaço, ou ganhavam a bola e seguiam a jogar, ou o árbitro dava falta e as perdas de jogo aéreo já não se traduziam em ganhos portugueses com a Islândia desarrumada. Esta estratégia parece inofensiva, à primeira vista. Mas o certo é que ficámos sem bola.

A isto somou-se uma outra deslealdade. O flanco direito islandês, que passara toda a primeira parte a deixar que Raphael Guerreiro fosse fazer companhia a João Mário e Rónáldo, de repente decide fazer um ataque. Assim, do nada, dá-lhes na cabeça e sobem pelo flanco que só não tinha pó porque, na primeira parte, o jogo era ao contrário. E deu golo. Reclamem o que quiserem com Pepe e Vieirinha, mas eu vi muito bem 6 portugueses na área contra 2 islandeses e só um dos islandeses estava marcado. O avançado levou tão bem o Pepe para onde quis que o Vieirinha, deslumbrado, nem deu por aquele loirinho muito bonito a aparecer-lhe nas costas, solitário e tosco, a rematar com a canela que tinha mais à mão e a meter bola fora do alcance do Patrício, coisa que Nani com a sua cabeça tão esperta e milionária não conseguiu fazer por 4 ou 5 vezes, uma delas a dois palmos da linha de golo.

Portugal produziu muito ataque e produziu bem. Falhou na concretização. Acontece. Não devia acontecer, mas acontece. Houve jogadores que jogaram melhor do que outros mas, enquanto equipa, as coisas funcionaram. Não entendo as críticas a André Gomes, a Danilo ou a Moutinho. Mesmo Nani falhou muito mas fez um golo. Rónáldo mexeu-se pouco e, ainda assim, trabalhou. João Mário esteve apagado, mas não o vi falhar passes e contribuiu para a boa circulação de bola. Não fomos nós que perdemos o ponto, foram eles que o conquistaram, com mérito. Os islandeses ganharam este ponto graças ao seu jogo de cabeça - da parte de dentro da cabeça.