quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Um assunto melhor que os outros

Tenho pensado muito no assunto. Começas a sentir-te mais velho e apetece-te fechar o punho e pousar sobre ele o queixo pesado, ficar assim longamente pensativo. A gente chega a uma altura em que tem de parar e perguntar "mas afinal o que é que aconteceu aqui?". O que é que aconteceu comigo, claro. Presumimos que a vida falhou, sabemos que qualquer coisa não correu bem, nem tudo é como esperávamos. Mas precisamos de saber como, queremos saber porquê.

Eu era medíocre, sempre fui e nem o meu complexo de messias impediu que, nas horas lúcidas, eu soubesse que não dava mais do que aquilo. Disfarçava esse estado com arrancadas diabólicas, picos de velocidade admiráveis e um ou outro golo apontados, na maioria das vezes, em estados que hoje me parecem uma espécie de transe - não guardo nenhuma memória clara de um golo que tenha marcado em jogos a sério; tudo o que me ficou são reconstituições coladas com o cuspe dos comentários alheios - do meu pai, do meu avô, do treinador, dos companheiros de equipa - e um ou outro flash muito tremido e desfocado do momento em que inusitadamente fiz com que a bola entrasse na baliza adversária. Os golos que marquei - felizmente não foram muitos - são o mais próximo que experimentei da levitação extracorporal: são fragmentos de um limbo entre o real e a fantasia que aconteceram, sem qualquer explicação, mais ou menos comigo ou com uma entidade fantástica da qual eu, naquele momento, participava.

Porém, a mediocridade, quando bem disfarçada, pode levar longe uma pessoa determinada e perseverante. Eu era convicto e cheio de sonhos. E acreditava profundamente que esses sonhos haveriam de realizar-se embora não encontrasse uma explicação lógica e razoável para conseguir demonstrar a mim próprio que sim, que era possível e que havia de acontecer num momento específico devido a qualquer coisa. Agora que reflicto sem pressas, penso que essa qualquer coisa talvez fosse um fenómeno aparentado a milagre que me permitisse, de um dia para o outro, passar a ser talentoso num campo de futebol. Esse fenómeno nunca aconteceu ou, então, esse dia ainda está para vir. Em todo o caso, temo que já seja demasiado tarde para eu ser abençoado com genialidade - e prefiro mesmo continuar tosco até ao fim dos dias, recuso peremptoriamente a possibilidade de um dia ser o Maradona da ala geriátrica.

Acho que o que me falhou foi a inadequação das expectativas. O pragmatismo que me falta em praticamente tudo na vida sobrava-me na maneira como encarava a minha futura carreira de futebolista: ia jogar no Torreense, para começar, e a seguir ia ser o número 7 do Benfica. O plano era bastante simples. Aliás, tão simples que nem sei como é possível ter falhado.

Dava comigo a imaginar o Estádio da Luz cheio - às vezes era domingo à tarde e jogávamos com o Espinho ou com o Chaves, outras vezes era quarta-feira à noite e recebíamos equipas como o Steaua de Bucareste ou o Malines -, a relva cortada curta e aparada em desenhos vistosos para quem estivesse a ver do Terceiro Anel, as redes penduradas, não muito esticadas, à espera daquele barulhinho fofo e demorado de quando a bola desliza a roçar-se nelas, o som macio dos chutos dados por adidas world cup em bolas da select. Mas a relva, a relva curta e bem tratada era o elemento fundamental. A relva muda tudo. Num pelado, o melhor que uma pessoa conseguia era dar pontapés à bola. Na relva era diferente. A bola tornava-se dócil e muito mais arredondada. Os meus pés, definitivamente ergonómicos, perfeitamente adequados à curva infinita daquele objecto fundamental, lidavam com o assunto como se eu calçasse pantufas. A relva suaviza o som de todas as coisas - a correria, as passadas fortes, os saltos, as quedas, os passes, as recepções. O jogo passa a ser sereno. Na relva não há lugar para coisas como o desespero porque desesperar num relvado seria uma enormíssima falta de respeito pelo chão que se pisa.

Joguei na relva do Campo Manuel Marques - o melhor relvado que alguma vez tive a sorte de pisar - numa única ocasião. Entrei na segunda parte e marquei um golo de pé esquerdo num pontapé de moinho à entrada da área. Foi este jogador - um prodígio de talento, um caprichoso esteta - que o futebol perdeu quando decidiu insistir que eu andasse por aí, de pelado em pelado, a tentar perceber os ressaltos de bolas mikasa em São João da Talha, na Póvoa de Santa Iria, em Alhandra, na Lourinhã, nos Olivais Sul ou em Alcabideche. Eu só precisava de mais relva e de outro glamour. Levantar-me cedo aos domingos para me ir equipar em cabines que eram pouco mais que barracas em terras mal semeadas entre os subúrbios de Lisboa e a província da Estremadura não era o meu sonho. O meu sonho nunca foi simplesmente jogar futebol; o que eu queria era jogar futebol em relvados bonitos. E foi isso que falhou.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Comprovativo de reclamação porque ando um bocado farto disto

Caros senhores,

estou muito desapontado com o serviço prestado pelo Benfica aos seus sócios. Começo por sublinhar que preferia falar-vos usando outros termos, recorrendo a outra terminologia, não falar em "serviços prestados" - preferia falar em "família Benfiquista" ou no "meu Clube", por aí fora. Infelizmente, o Benfica tem vindo cada vez mais a tratar os seus sócios e adeptos como clientes e não como membros de uma gigantesca família. Não foi assim que nasci e cresci no Benfica, mas é a realidade que me apresentam. Contrariado, adapto-me: sou vosso cliente, negócio fechado.

Agora, enquanto vosso cliente, tenho algumas exigências a fazer. Por exemplo, exijo-vos que não sejam ridículos, que não me enviem mensagens de "feliz aniversário" com um mês de antecedência - são detalhes, eu sei, mas é o meu aniversário e não gosto. Faço anos todos os anos contra a minha vontade. Agradeço que, no mínimo, respeitem a data em que se arredonda o castigo que o tempo me inflige.

Tudo isto é um disparate porque é, como disse, ridículo. E também não gosto que me ofereçam como prenda de anos uma entrada gratuita no Museu Cosme Damião, à qual eu já tenho direito por ser sócio com as quotas em dia e ter redpass. Isso não é uma prenda. Isso é uma imbecilidade - eu entro no Museu quantas vezes quiser, não preciso de fazer anos e não preciso que me convidem e não preciso de pagar entrada.

Mas há coisas que me ofendem mais ainda. Ofende-me que me enviem um e-mail com as condições de aquisição do "pack Liga dos Campeões" e, na véspera de terminar o prazo, mudem as condições: de repente, deixei de poder pagar até dia 8 e tinha de pagar até dia 7. Isto o que é? Uma forma de pressão? Vamos esclarecer uma coisa: se o Benfica me vende tão orgulhosamente "produtos" e me presta tão empresarialmente "serviços", o assunto muda de figura. As condições do nosso negócio não se alteram só porque vos apetece. O Benfica não é o clube lá da aldeia em que o presidente de repente muda de ideias e, afinal, as rifas da quermesse para sortear a bola da Mikasa já não são a 50 cêntimos, passa a oitenta - e o sorteio não se faz ao intervalo, passa tudo para o fim do jogo, pode ser que se vendam mais algumas. Não podemos ser amigos e compreensivos e adeptos fervorosos para umas coisas e clientes tratados a frio, pagadores correntes e gente que financia um negócio para outras coisas. Tem de haver coerência. Tem de haver cuidado. E tem de haver respeito, quer eu seja vosso cliente ou vosso sócio.

Espero que compreendam uma coisa: eu nem tenho o hábito de reclamar, mesmo depois de alguns anos a pagar lugar cativo sem receber nada em troca e a ver o Benfica oferecer ao adepto de ocasião todas as formas de boas-vindas, bilhetes gratuitos, foguetes e medalhas. Eu vou ao Estádio com o maior dos gostos e não preciso que me seduzam para fazê-lo. É lá que gosto de estar. Mas quando recebo a inenarrável mensagem a cobrar-me por uma nova emissão do cartão de sócio, naturalmente fico nervoso. Estão mesmo a falar a sério? Vão-me cobrar cinco euros por um novo cartão de sócio? A seguir temos o quê, o Benfica manda-me os dados e eu próprio vou imprimir o redpass? Isto serve para quê? Para pagar à equipa de escuteiros nonagenários que demoraram quatro ou cinco meses a contar os papelinhos onde estavam anotados os nomes dos sócios? Por favor, não me envergonhem.

Saudações Benfiquistas,