quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Trinta e seis

E então acordei e já não acreditava. É estranho: passas a vida a alimentar uma miragem e ela, que teima em não ganhar formas concretas, em não se concretizar, vai-se esvaziando como um balão sonolento, devagarinho, até que fica irremediavelmente murcha. Olho para o espelho e já não sou novo. O puto que andava a correr atrás da bola no largo do pelourinho, à frente da velha cadeia, é uma espécie de primo longínquo, muito mais novo que eu, de quem guardo boas recordações. Que terá ele feito da vida, pergunto-me às vezes.

Um bocadinho mais crescido, ia jogar para o campo do Mafra. Na altura os portões não se fechavam, aquilo era pouco mais que um clube de aldeia - duas dezenas de adeptos, um barracão a fazer de bar onde se vendiam as bifanas, os amendoins e a coca-cola (mais tarde vim a saber que também vendiam cerveja), uns balneários quase decentes, cabines de suplentes muito dignas, em pedra, porém pequeninas, uns eucaliptos enormes por trás da baliza poente e era nessa baliza, eternamente à sombra, que eu marcava penaltys com uma bola do Benfica (às vezes ia sozinho). Depois joguei mesmo no Mafra, com equipamento e tudo. E botas de futebol que a minha mãe engraxava com brio e com esperança. Tínhamos sonhos.

Porque eu depois ia jogar no Benfica. O plano era muito simples. Consistia em ir jogando à bola até que chegasse o dia em que o Benfica se apercebia do meu talento e então o Benfica mandava uma equipa de pessoas que chegavam, mandavam parar tudo e diziam ao meu pai "senhor Urbano, vamos levar o seu filho. Precisamos muito dele. Obrigado por tudo". A minha mãe fazia-me um lanchinho à pressa e passava-me a mochila com uma ou duas mudas de roupa e o chefe da equipa de pessoas dizia "não se preocupe com equipamento que temos lá tudo". E lá ia eu. A minha missão era livrar o mundo do poderoso Milão repondo a ordem natural das coisas com o Benfica no topo, acima de todos.

E eu fui tentando cumprir o plano, cada vez com mais esforço mas sempre carregadinho de esperança, uma esperança inabalável, como se tudo no universo, no tempo e na minha existência tivesse um destino óbvio: vestir aquela camisola 7, fazer a ala toda, encher o campo com cruzamentos milimétricos, passes de morte rasteirinhos e diagonais diabólicas.

A dada altura, apercebendo-me de que o Benfica demorava a aperceber-se de mim, tendo eu contas para pagar e um futuro urgente por resolver, decidi fazer uma pausa. Não era abandonar o futebol. Era apenas descansar. Apanhar ar, refrescar, ganhar balanço para um dia mais tarde reiniciar tudo, reentrar em campo - sempre com o pé direito (nunca me benzi, sempre achei ofensivo andar a chamar deus para um assunto de homens; nunca quis intromissões nem batotas, sempre fiz jogo limpo; nunca levei um amarelo na vida) -, levantar finalmente o Estádio com um golo de bandeira, um pontapé de fora da área capaz de fazer o Rui Costa comover-se. Eventualmente, ser campeão europeu como José Águas. A toda a hora ser digno de tudo o que se herda quando se enverga a mais bela das camisolas.

Mas hoje acordei e o Benfica ainda não tinha mandado uma equipa de especialistas em grandes jogadores do futuro e nos jornais ainda não tinha vindo escrito sobre mim que era "o prodígio escondido" ou "o génio esquecido" ou "um talento por revelar", pelo que perdi definitivamente a esperança. E eu estou velho. Hoje acordei e estava mais velho que Pablo Aimar. Nunca vou jogar no Benfica.

domingo, 23 de agosto de 2015

Acho que me enganei quando pensei que, afinal, me tinha enganado

Não se preocupem que ele cresce. Dêem-lhe tempo. Para a semana ganhamos 4-0 outra vez e havemos de ir assim por aí fora, de cruzamento em cruzamento, goleada-sim, goleada-não, derrota-sim, derrota-não, vergonha-sim, vergonha-não, de pontapé para a frente em pontapé para a frente, a meter muitos avançados, todos os que for possível, comprar dezenas de avançados e meter lá pelo menos uns dez ou onze, para irem para lá fazer tiro ao boneco, tiro à bancada, tiro à bandeirola, tiro para Estarreja, tiro para Ílhavo, tiro para Ovar, o que importa é chutar de força, ela há-de entrar. Nem que seja na próxima jornada. Dêem-lhe tempo que os zero jogadores que há ali no meio-capo hão-de multiplicar-se, como Jesus, o original, fez não sei onde quando as pessoas estavam cheias de sede mas não lhes apetecia água. Ai, não, ele fez isso foi com pães. Isto com um bocadinho de manteiga marcha tudo, é preciso é deixá-lo ser criativo, dar-lhe estímulo, dar-lhe tempo - sobretudo tempo - e esperar que a bola entre. A bola há-de entrar, nem que seja em Setembro ou Outubro, temos tempo. É impossível que a bola não entre pois se eles a atiram tantas vezes lá para a frente a coisa há-de ir ao sítio, é demasiado improvável que ela não entre nunca.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Às vezes engano-me e tenho sempre muitas muitas dúvidas

Não há muito para dizer. O jogo oscilou entre o medíocre e o mediano até à incrível entrada de Talisca - ou até à tardia saída de um Pizzi catastrófico. Ver o Jonas dentro do jogo, substituído na função de "inútil entre os centrais" pelo Mitroglou, deixou-me muito satisfeito e faz-me aceitar que talvez - talvez! - o Rui Vitória não seja tão ignorante e inábil quanto eu acho que é. Para já, vou defsrutar da maravilhosa possibilidade de estar profundamente enganado.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Joly há-de crescer

Há uns anos, fui com um amigo até ao Cais do Sodré. Costumávamos sair um bocado, normalmente até às tantas, sempre que ele vinha a Lisboa. Ele é do Porto e é portista, já agora, mas é bom rapaz. Nessa noite encontrámos um amigo dele, alguém com quem já tinha partilhado palco ou estúdio, não me recordo bem. Prosseguimos juntos, os três, uma tranquila maratona de copos percorrendo categorias diversas de álcool, acompanhando sempre com conversa e muitas histórias.

Lembrei-me hoje de uma dessas histórias, contou-ma o outro rapaz, que se lembrou dela quando viu entrar, Oslo adentro, fogosa e enérgica, uma prostituta anã. Parece então que, na terra desse rapaz, uma aldeia nas costas do desconhecido e de frente para o inexplorado, "num recanto", dizia ele, "lindíssimo, uma coisa inexplicável, cheio de riachos e canaviais, mato rasteiro na planície baixa e árvores tortas quando as encostas se inclinam", lá nesse pequeno paraíso que há-de ter nome de santo ou de santa, havia uma mulher que não conseguia ter filhos. O marido acabou por deixá-la, alguns anos depois do casamento, que foi consumado mas que não deu frutos e que assim, estéril, continuou, estação após estação.

A mulher, abandonada e seca, não se conformava. Toda a aldeia paria, só ela é que não. Os anos passavam e ela, que já não era abastada de beleza, envelhecia e via-se a desesperar. Até que um dia passou o circo lá pela terra. Não ficou muito tempo, foram três ou quatro dias. Mas foi tempo bastante para que a mulher tivesse conhecido uma das atracções, um anão ruivo a quem chamavam Joly. Para surpresa de todos e por obra de misteriosos encantos, Joly abandonou o circo e ficou a viver em casa da mulher. Assim, de um dia para o outro e sem darem, nem um nem outro, explicações a ninguém.

E viveram juntos, vários anos. Ninguém sabe se eram felizes ou não. Eu acho que não foram. O tempo passou e chegou um novo Verão - há sempre um Verão fatal numa aldeia - e com o Verão veio um novo circo. Ainda a tenda principal não estava montada e já a mulher levava Joly pela mão, praticamente arrastado, esperneando e barafustando. O povo espreitava das janelas e das ombreiras das portas. A mulher foi reclamar com o director do circo. Ninguém conseguiu perceber os detalhes da conversa, mas toda a gente ouviu quando a mulher berrou "MAS ACHA QUE EU QUERO FICAR COM ELE?! ENTÃO SE O MIÚDO NÃO CRESCE MAIS QUE ISTO!..."

A história teve muito mais graça ao balcão do Oslo às três da manhã, a matar a sede com Bushmills. Mas hoje lembrei-me dela várias vezes, sempre que lia alguém na internet a defender que devemos "dar tempo a Rui Vitória" para "deixá-lo crescer".

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Não subestimemos Vitória

Jorge Jesus - eu tinha prometido a mim mesmo que não voltaria a começar um texto com estas palavras, mas a realidade foi mais forte do que eu - disse que o Benfica é favorito para a Supertaça. Fê-lo durante mais um exercício típico de jorgismo em que alegou que o Benfica "joga de olhos fechados" porque "há seis anos" que a equipa trabalha de determinada maneira - em seguida, lubrificou o umbigo e enfiou lá dentro um cabo de vassoura.

Por partes: admito que seja possível que aquela malta jogue de olhos fechados. A julgar pela desorganização da equipa e pela quantidade de passes errados e remates sem destino que os jogadores fazem durante o jogo, diria até que é provável. Mas discordo da segunda parte do raciocínio de Jesus: está a subestimar as capacidades de Rui Vitória - a quem tragicamente ainda resta mais uma semana de trabalho até ao jogo da Supertaça! - para incinerar tudo o que foi feito em matéria de ideia de jogo ao longo destes últimos seis anos. Da pressão à intensidade, do comprimento da equipa ao esquema táctico, acabando na noção fundamental do objectivo do próprio jogo - fico fascinado com a ausência da ideia de baliza na estratégia de Vitória -, tudo me dá a sensação de que a missão arturjorgiana deste treinador no Benfica é eliminar qualquer vestígio da passagem de Jorge Jesus pelo clube.

Custa-me aceitar que em 2015 um treinador do Benfica se comporte como se estivesse a preparar a equipa para a gloriosa época de 1987 e que o faça sem querer. Se for esse o caso, creio que Vitória se equivocou quando escolheu a profissão. De qualquer modo, alguém se enganou redondamente quando decidiu contratá-lo para treinador do Benfica.