quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Adestradores de bancada

Foi há sete meses e meio que tomei, sem ponderação excessiva nem exagero de impulso, a decisão de ter um cão. Não é um cão qualquer. Nem, tão pouco, é um cão, já que é uma cadela. Continuando, o que quero dizer é que não se tratou de querer um cão só porque sim, foi antes o realizar de um desejo já antigo: ter por companheiro um fox terrier.

O momento ideal para se ter um cão é mais ou menos semelhante ao momento perfeito para se ter um filho: não existe. Quando tem de ser, tem de ser e o que tiver de acontecer acontece. Ainda assim, quando comuniquei a boa-nova a quem me é mais próximo, não houve quem não tivesse um "mas" ou um "se" como adenda ao "opá, é tão linda!". Que vivo num apartamento, que trazem doenças, que têm pulgas - a tudo fui retorquindo que passo os dias em casa, pelo que posso dar-lhe atenção enquanto cresce e precisa de ser educada; ou que tinha um dinheirito de parte para as primeiras e mais pesadas despesas. Sempre senti que não conseguia, na altura, convencer ninguém da minha boa intenção nem das minhas capacidades para fazer da Lolis Regina uma cachorra feliz e bem sucedida.

Certo dia, tinha a pequena Lolita os seus 4 ou 5 meses e já eu começava a sentir-me desmotivado com tantas dúvidas e críticas, uma senhora fez-lhe uma festinha e disse "ai credo... ela tem um focinho tão esquisito, tão comprido" ao que eu respondi, sorridente, "ah ah, sabe, isso é da raça" e a senhora fez uma expressão intrigada, pelo que acrescentei "é uma fox terrier" sem que me apercebesse da irrelevância e da ineficácia de tal informação - respondeu-me com cara de "sério?! Pensei que fosse um cão".

Foi nesse instante que comecei a ganhar consciência: talvez muitas opiniões e conselhos adviessem da ignorância e não da experiência ou dos conhecimentos, como eu esperava. Seguiram-se muitos episódios com dicas mais ou menos recorrentes: que tinha de ser mais obediente, que precisava, se calhar, de correr, que era importante que soubesse andar sem trela, que tinha de vir ao meu chamamento, por aí fora. Factos como ter apenas 7 meses, ser de uma raça extremamente enérgica e, inicialmente, desatenta como se fosse hiperactiva, pareciam ser irrelevantes. Viver num sítio labiríntico, sujo, com trânsito e cheio de cães à solta nem sempre bem cuidados - e a cachorra ter apenas um palmo e meio - também parecia ter pouca importância. Porque havia quem tivesse visto o Encantador de Cães Cesar Milan e soubesse como se conduz uma trela, outros que tinham tido um primo, na infância, que tivera um pastor alemão que se sabia sentar, muita gente decidiu ter opinião sobre o modo como eu estava a criar a minha cadela.

Nos dias de hoje, em que toda a gente pode opinar e ter um público para a sua opinião, são muitos os que exercem o atiramento do bitaite de um modo quase compulsivo. É como se, só porque pode fazê-lo, uma pessoa se sentisse obrigada a fazê-lo realmente. A isto acresce que parece que a ignorância, que outrora inspirava medo aos humanos, se tornou entretanto num dos maiores motores da vontade de dizer coisas,mesmo quando não se sabe muito bem o quê e muito menos se tem fundamento para o porquê.

Hoje, aos 9 meses, a Lolinha vem quando a chamo, senta-se, deita-se e até sabe esperar que lhe sirvo a comida, sendo que só vai à gamela quando lhe dou licença, mesmo que a comida lá esteja à espera, em frente a ela. É uma boa cachorra. Educar um cão terá ciência, seguramente, mas assenta muito mais no conhecimento do que temos em mãos e na relação que se estabelece entre homem e cachorro do que em teorias que vemos pontualmente na televisão ou em opiniões imediatas, sem grandes fundamentos, que formamos quando olhamos para um cachorro uma vez por semana, durante 90 minutos, ora num ecrã via SportTV, ora a partir do terceiro anel. É que, depois, quando os resultados ficam à vista, dá-me vontade de perguntar ao adestrador de bancada "mas quem é que aqui sabe melhor do que eu o que eu tenho de fazer?!".

Adenda: não me interpretem mal. Não quero, com este texto, dar a entender que tudo é perfeito e maravilhoso, que nada poderia ser melhorado ou que sei tudo, absolutamente tudo e com plenas certezas acerca de como educar um cão. Há dias em que algumas coisas correm mal - uma peúga que desaparece e surge, misteriosamente, alguns dias mais tarde, ratada e debaixo do sofá; um sapato que é roído; uma mijinha que ela não consegue aguentar e vai mesmo ali no tapete. E tudo isso sucede, obviamente, por culpa minha e não dela - é minha responsabilidade levá-la a não fazer essas coisas. Contudo, são coisas que acontecem porque não conseguimos controlar tudo, sempre, a toda a hora. Por vezes, há episódios e contextos que nos impedem o total controlo. Não vale a pena pôr em causa todo o meu trabalho e dedicação a este magnífico animal só porque no fim-de-semana que passou ele não foi buscar o osso como a gente queria, como eu estava à espera...