quarta-feira, 17 de setembro de 2014

As sapatilhas do pescador

Quando me deram um saco de papel do Benfica "toma lá a tua prenda de anos" pensei que me estivessem a oferecer aquela camisola clássica, com a gola branca e o símbolo num pedaço de pano oval cosido ao peito. Essa camisola é a mais bela de todas. Mas peguei no saco e percebi que lá dentro vinha uma caixa. Uma caixa de sapatos. Abri a caixa e aposto que os meus olhos brilharam: uns Sanjo SLB, pretos com uma lista encarnada. Toquei-lhes e o Salvio marcou um golo, "estão abençoados", gracejou-se à mesa da Típica. De cada vez que os fui mostrando, o Benfica foi marcando mais um golo.

Ontem a minha confiança era inabalável: com os Sanjo nos meus pés, o Benfica seria imbatível. A confiança durou até a bola ter passado pelo desastre do Jardel. Quando, minutos mais tarde, o Artur foi expulso, pensei "caramba... o que é que estas sapatilhas querem de mim, afinal? Na estreia, a perfeição; logo a seguir, o cataclismo. Não compreendo". Ao intervalo, mandei mensagens a amigos meus "vou dar as sapatilhas ao Jardel... a mim dão-me azar e ele pior também não fica".

E fui vendo, enquanto aguardava uma aparentemente inevitável goleada do Zenit, o Sálvio e o Maxi a correrem por quatro, o Enzo a esfolar-se, a arratar-se e a arregaçar os calções para tentar uma vez mais, o Gaitan e Eliseu a fazerem piscinas, para trás e para a frente, como se tudo ainda fosse possível, o Luisão e o Samaris a desdobrarem-se entre o centro defensivo, o transporte de jogo, a organização do ataque e até a finalização. Dei por mim à espera de ser goleado e a ter esperança na reviravolta, ao mesmo tempo.

No fim, quando já não havia forças para mais e tudo estava definitivamente perdido, o Zenit começou a trocar tranquilamente a bola. Os nossos, de rastos, pareciam ter baixado os braços. Foi então que o topo Sul deu o mote e o Estádio se levantou para um aplauso infinito, uma declaração de amor incondicional. E os rapazes, lá em baixo, ergueram a cabeça e tentaram uma vez mais num último fôlego inglório.

Tive vontade de chorar. Não sei o que sentiram os outros trinta mil, mas eu senti uma profunda gratidão por todos aqueles que Nos defenderam ali, naquele relvado. E por todos os que não os deixaram cair. Pelo Benfica e por ser Benfiquista.

É curioso que o futebol esteja tão presente nas minhas mais marcantes experiências de humildade. Certa vez, na escola primária, a minha equipa perdeu um jogo, discutimos todos. Acabámos chateados. Quando regressei à sala, senti uma tristeza tão grande que hoje parece impossível tê-la sentido. Mas não foi a derrota que me magoou. Foi a solidão. Naquele dia, naquele momento, senti que perdera todos os meus amigos. Fiquei sozinho.

De outra vez, no recreio do ATL, alguém me rasteirou maldosamente. Na altura fiquei irado. Mas, momentos mais tarde, aconteceu-me um fenómeno estranho: senti uma felicidade gigante, como se tudo naquele preciso instante fosse perfeito. E, nesse inusitado rasgo de harmonia, senti que tinha perdoado o sacana que acabara de me atirar ao chão.

Ontem foi a vez de tomar o peso à gratidão. É esmagador. E sinto-me igualmente grato aos meus amigos pelas Sanjo. Por me permitirem compreender o valor inestimável de um par de sapatilhas de aprender.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Corrector geográfico

Nada como um empatezão - um empatezorro! - na Luz para ressuscitar o segundo clube preferido dos sportinguistas: "o Carnide". "O Carnide" invadiu, desde ontem [anteontem] à noite, tudo o que é forum dessa internet, dos comentários d'A Bola aos blogues, passando por grupos do facebook.

Dou de barato a deselegância, afinal é de bola que se trata e não vale a pena andar aqui com mariquices. Mas, como sou sensível à vertente pedagógica e ao rigor, para além de não gostar de ver-vos fazer figura de urso, repito o que digo há anos: Carnide é uma simpática freguesia de Lisboa, já nas franjas da cidade, que acaba, a Sul, na segunda circular. Olhando para o mapa e associando-o à expressão, "o Carnide" tanto pode referir-se ao Benfica como ao Sporting ou ao Fofó.

Se querem mesmo amesquinhar com o nome do Clube que vos dá a sombra, chamem-lhe "o São Domingos" (é em São Domingos de Benfica que fica a Catedral onde ontem [anteontem] vos foi concedido o milagre). Se preferirem, usem diminutivo, "o sãodominguinhos", por exemplo. Qualquer coisa. Mas deixem de ser ignorantes.

Não têm de quê.

NOTA: esta é uma republicação de um texto originalmente escrito no facebook. Trata-se, como o leitor já terá concluído, de um fruto da preguiça de escrever coisas novas e, porque não, da falta de assunto, que eu não sei quem é o Cristante.

16 de Abril sempre!

Se escrever crónicas fosse como andar de bicicleta, é certinho que eu ainda saberia como começar este texto. Sim, estou a assumir que já soube escrever crónicas - contestem à vossa vontade, é só uma opinião. Estou a presumir que ainda alguém lê o que escrevo - e contrariem-me se não me estiverem a ler.

Muito Benfiquismo se passou desde a última vez que aqui vim dizer qualquer coisa. A verdade é que não senti que tivesse o que quer que fosse de pertinente ou especial para partilhar com o mundo num formato que ultrapassasse as três ou quatro linhas que uma laracha de facebook demora. Depois, quando me apeteceu escrever, desatámos a ser campeões e a ganhar taças e a perder uefas mas só nos penalties. Quando se ganha, não há criatividade que resista: está tudo dito, ali, no campo, no placard, no troféu que o capitão ergue no ar, nos confétis, no Marquês de Pombal, na barbearia do Carlos aqui por baixo de minha casa, no mundo, no meu rosto, nos meus sonhos, no meu espelho ao acordar: "bom dia, seu campeão lindo...". Acrescentar-lhe o quê? Que lá estive para os aplaudir? Mal de mim se não estivesse - e nem faria lá falta.

Mais tarde, meteu-se o campeonato do Mundo, que é uma prova que está à vista de toda a gente, a toda a hora, em toda a parte. Se a senhora da padaria consegue comentar com a vizinha da frente um Alemanha - Portugal, para quê dar-me ao trabalho de acrescentar o que quer que seja? Se eu acho que o Pepe foi bem expulso? Eu acho que o Pepe é um bocadinho malcriadão, portanto comigo estará sempre fodido.

Entretanto, meteram-se as férias, deu-se a debandada da Luz, eu andei a trabalhar, houve calor mas pouco, fui à praia, tratei da cadela, passeei um bocadinho, aturei turistas, tuk-tuks e clics de iphones a fotografar em toda a parte, à minha porta, de frente para mim, nas minhas costas, enquanto me distraía, enquanto apanhava os cocós desta cabra que me está a roer os chinelos outra vez - puta que a pariu -, enquanto enrolava cigarros, enquanto bebia uma cerveja a olhar para as paredes do bairro, para os estrangeiros do bairro, para as francesas a falar inglês com o condutor do tuk-tuk que é italiano e que lhes está a contar a história de Lisboa e que é tudo quase cemporcento mentira. Nessa altura, abdiquei das aliterações e não me meti em metáforas. Foi um descanso santo. O mais intelectual que fiz foi ler qualquer coisa do Paul Auster - e foram três ou quatro semanas para pouco mais de 300 páginas. Paul Auster, vejam bem.

Quando me senti finalmente revigorado e pronto para falar do Benfica, do que é o Benfica ou, no mínimo, dos meus dramas de Benfiquista, veio o Valência e comprou quase tudo e eu estive quase para assinar por eles também, já estava afeiçoado a boa parte daquela equipa que eles têm agora. Disse-me um amigo «é uma espécie de Benfica a preto e branco» e quase me vieram as lágrimas aos olhos ao recordar-me da nossa Equipa quando ainda ganhava finais europeias. Mas recompus-me.

Senti tristeza quando dei por mim, campeão, a sentir-me descampionizado ainda a bola não tinha começado a rolar. Depois o Enzo ou ia ou ficava, mas quase de certeza que ia e se fosse descíamos à segunda divisão e o Clube mais valia fechar as portas. Dei comigo a querer escrever mas sem saber o que pensar. Por mim, não fecham as portas nunca, nem que o Enzo vá para o Sporting e a gente desça aos distritais. Mas o Enzo foi ficando, a defesa que era uma miséria não sofria golos, o Artur defendeu penalties, ganhámos uma supertaça e a seguir vinha o Sporting. Evidentemente, não escrevi, estava tudo a correr tão bem que eu não queria enguiçar esta merda.

Durante a pausa, perdi qualidades na contenção do vernáculo. Naturalmente, é falta de treino. No fim de contas, nem o Benfica ganhou ao Sporting, nem o Artur defendeu penalties do Nani, nem o Enzo foi para o Valência - e ainda bem que renovei o Redpass, assim sendo, em vez de ir atrás do Rodrigo e do outro miúdo.

Tem graça pensar no rapaz agora. É que foi ele, o André Gomes, quem fez surgir o título deste texto, iam decorridos uns oitenta minutos, mais ou menos, de um Benfica - Porto para a Taça de Portugal, jogávamos nós com dez, mais coisa, menos coisa. Estávamos, dias depois e na véspera dos 40 anos da Revolução, numa jantarada de amigos, imbuídos do espírito revolucionário e concluímos que o André Gomes foi o nosso pequeno Salgueiro Maia, símbolo maior da insurreição contra o poder instituído, ícone de um povo farto de ser submisso, transposição física para o relvado da vontade democrática de uma multidão oprimida.

Foi a 16 de Abril que virámos uma eliminatória contra o rival-novo, foi nesse dia que, em desvantagem, com tudo contra nós e como há muito tempo não se via, mostrámos a força, a garra e o talento para fazer melhor do que eles. «É desta que o regime cai», comentámos, brindando com uma bebida qualquer de elevado teor alcoólico enquanto um senhor declamava, sem jeito nenhum, o FMI do Zé Mário Branco - uma coisa medonha, não se deve ofender assim a poesia. «16 de Abril sempre!», gritámos, cheios de sonhos e de ingenuidade. E então prometi: «será esse o título do meu próximo texto». Aqui estou eu, a cumprir a promessa.