terça-feira, 24 de setembro de 2013

Dormir mal faz-me sonhos bizarros

Estava a chover e era de noite e eu não sei muito bem o que estava ali a fazer. Enrolei um cigarro encostado a uma árvore que me abrigava, ainda que precariamente. Um carro vermelho, vim a perceber depois que era um El Camino, parou do outro lado da estrada. Lá dentro vinham duas pessoas. O condutor saiu. Alto, de calças de ganga e t-shirt preta, fechou a porta com força e dirigiu-se a mim. Era o Tacuara.

Primeiro, fiquei confuso «Cardozo? Oscar Cardozo?!» e ele «si, si» e depois o telefone dele tocou. Atendeu e, pela conversa, percebi que se tratava de uma negociação. Mais precisamente, da sua própria transferência. Falava numa espécie de português com pronúncia espanholuguaia. «Vais-te embora? Vais deixar o Benfica?». E ele «si, si... estoy muy feliz. Vou para el Sporting». Ri-me bastante, pensei que era piada. «Verdad. Vou para el Sporting». Contemplei-o enquanto tentava processar a informação. Pediu-me que lhe enrolasse um cigarro. Fiz-lhe um cigarro.

«Estás a gozar... Vais para o Sporting fazer o quê?» Acendeu o cigarro e, com uma expressão muitíssimo feliz, disse «pagan muy bien» e sorriu enquanto travava o fumo - com demasiada força, na minha opinião; era apenas um Golden Virginia, não era skunk nem nada disso. Tentei dissuadi-lo. Perguntei-lhe quanto pagavam «oh, no voy a dicer... es mucho. Mucho mucho».

Tentei manter-me calmo e bem-disposto, brincar com a situação. Fumávamos os dois, sorridentes, a chuva caía, o outro ocupante do El Camino - pareceu-me ser uma mulher, mas só lhe vi a silhueta - fez sinais de luzes com impaciência. O Tacuara nem ligou. Aliás, até se riu. Lembro-me de ter ficado surpreendido, de o ter achado muito mais espirituoso do que alguma vez imaginara. Ele, que é carrancudo até quando fuzila um guarda-redes adversário, era afinal um tipo sorridente, com alegria - uma alegria suave, sem excessos; mas uma alegria boa, poderosa, confiante.

Foi então que lhe disse «Vou fazer um telefonema, vou ligar para Lisboa. Conheço gente capaz de te impedir de fazeres uma loucura dessas». Ele riu-se de novo, com gentileza. Atirou o cigarro para o chão e pisou-o para o apagar, embora a chuva pudesse ter tratado do assunto por ele. Despediu-se de mim e, enquanto se dirigia para o carro, dei por mim a fazer o telefonema «Pai?... ó pai, fogo, o Cardozo diz que se vai embora...» Ligou o carro e arrancou.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O Mistério

Assisti ao jogo de sábado num restaurante ali perto do Campo das Cebolas. Ao jantar, éramos dois Benfiquistas, uma sportinguista, um belenense, um adepto do União de Coimbra - não sei como se designam os adeptos do União de Coimbra - e um número indefinido mas bastante generoso de adeptos portistas. Eram seis ou sete, talvez.

A constituição das equipas prenunciava um derby atípico: de um lado, havia mais portistas do que Benfiquistas e sportinguistas juntos; do outro, o Cortês era titular.

No final do jogo, antes de ir beber uma poncha, comentava com um dos portistas que aquilo que mais procuro enquanto apaixonado do futebol é, precisamente, a origem dessa paixão - ao mesmo tempo que o que mais me maravilha na minha paixão pelo futebol é exactamente a impossibilidade de a explicar e de lhe identificar a origem. O que me move é também o mistério disto de ser Benfiquista - essa maravilhosa conjugação genético-temporal que impediu que eu tivesse morrido antes de 1908.

Ontem passei o meu dia a colher a sementeira da noite anterior, tanto ao nível de paixão futebolística quanto das consequências dramáticas de uma poncha feita com sabedoria e sem delicadezas. Não sei se me doía mais a cabeça de pensar no jogo ou de ter bebido um terceiro copo.

Ainda ontem um amigo Benfiquista debatia comigo, via facebook, a tremenda pobreza deste derby. Contrapus que o jogo não fora mau e que o resultado me parecia justo, ao que ele respondeu sabiamente «o que mais me desilude num derby é que ele seja justo e como se espera». Hoje foi outro amigo que se insurgiu contra a falta de sal que este jogo, outrora maravilhoso, apresenta nos tempos recentes.

E a verdade é que a bonomia de que este derby - O Derby! - se revestiu vai contra a essência de alguns dos ingredientes que, seguramente, compõem o mistério por que me apaixonei nem sei bem quando, provavelmente ainda antes de ter nascido.

Dantes eu tinha nervos nas semanas que antecedem o jogo. Agora, sinto um leve aperto no estômago durante os primeiros minutos da partida, que é normalmente o período em que os jogadores adversários têm pernas. Mas depois passa-me. Pior ainda é chegar ao fim e ficar mais ou menos indiferente ao desfecho do jogo - «vá lá, o Markovic marcou, foi um grande golo e tal, empatámos, não é vergonha para ninguém» - e fico absolutamente desiludido comigo porque este sempre foi para mim O jogo dos jogos.

Não sei se o mal está em mim, mas sei que já não encontro mal neste jogo. O mal era um ingrediente vital, era a matéria pulsante que nos fazia vibrar. Eu não quero empatar um a um com o Sporting - se for para empatar, que seja dez a dez que é para eu ver esses gajos, pá, ir apanhar a bola dez vezes ao fundo da baliza. Andamos simpáticos, andamos meigos. Gosto muito de nos ver a todos civilizados e folgo em saber que os dois rivais conseguem ser rivais sem andar à porrada. Não é disso que estou a falar. Falo de uma atitude de cada adepto para consigo próprio. Talvez nos ande a faltar a chama que incendeia aqueles jogadores e os faça sentir que Aquele jogo não é um jogo qualquer.

Dou por mim a ter mais receio de ir à Madeira do que de ir a Alvalade, dou por mim a ver O derby entre portistas, dou por mim a não ter dores de barriga, dou por mim a ter mais incertezas quanto ao resultado que faremos em Coimbra do que ali e isto tudo amolece-me. Já não espero golear em Alvalade como não espero ser goleado. Já considero improvável que o Benfica perca. Mas, pior ainda, é constatar que os resultados destes derbys modernos se adequam, quase sempre ou pelo menos dentro de um limite razoável, ao futebol que foi praticado no campo. Isso pode ser justo mas eu aqui trocava a justiça por uma surpresa que me deixasse de rastos ou que me levasse às nuvens.

Se eu quiser ver justiça, vejo as séries da noite na SIC e na TVI. Se eu quisesse ver coisas adequadas, comprava um aquário e punha lá dentro dois peixes dourados. Eu quero ver é futebol por outra razão qualquer, que eu desconheço mas que me apaixona.