quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Momento pedagógico

Não sou particularmente dado a superstições. No entanto, sou adepto da correcção no que respeita a procedimentos. Possuo, aliás, certos traços de comportamento obsessivo-compulsivo que me compelem a determinados rigores que, se não forem cumpridos, me causam transtorno e desordem. Por exemplo, nunca fui ao hemisfério Sul, faz-me confusão andar de cabeça para baixo. Ou não piso as divisórias dos passeios. Ou não gosto de ter o pé esquerdo sobre um tapete e o direito fora dele, prefiro sempre manter ambos sobre o mesmo plano ou objecto, isto salvo quando subo escadas, porque evito expor-me ao ridículo de as subir aos pulinhos, a pés juntos. Noto agora que o elemento comum a boa parte das minhas obsessões é o sítio onde tenho os pés.

Há pequenas tarefas e funções que encaro como desígnios. Por exemplo, gosto de desligar a luz do hall de entrada com uma cadência determinada e de acender, logo de seguida e na mesma cadência, a luz das escadas, de maneira a obter a batida inicial do Sunday, Bloody Sunday, e fico bastante aborrecido quando não consigo o efeito desejado - estraga-me o dia.

No que respeita a desígnios e obsessões, a linha que separa o aceitável do absurdo é bastante ténue. Não é fácil encontrar uma explicação coerente, sobretudo quando instado a argumentar relacionando causa e consequência. Há, porém, matérias em que a justificação merece escusa.

Vem esta breve introdução a propósito de um pequeno drama que me afectou, bem como a terceiros, durante o dia de ontem. O que aconteceu foi que me acusaram de mau companheirismo. Privei a minha equipa, os All Fama All Stars, do meu esforço e do meu talento no encontro semanal contra uns certos meninos de Oeiras, que teimam em medir forças connosco. Se a explicação para a minha ausência pode ficar à mercê de espíritos mais ou menos compreensivos, já a justificação para a minha conduta dispensa qualquer tipo de elaboração em termos racionais.

A verdade é simples e clara: recuso-me a jogar à bola em dia de jogo do Benfica. Há vários conflitos de interesses logo à partida. Antes de mais, existe o interesse do Benfica, que será sempre o meu. O Benfica joga, a minha energia é do Benfica. Não é para desbaratar num relvado sintético ali na Ajuda num jogo que não vale nem uma rodada de cervejas. Sejamos sérios.

Há quem veja nisto uma superstição, mas desengane-se quem pensa assim. É uma questão de interesse uno, meu e do meu Clube. O meu desígnio primordial sempre foi estar com o Benfica e o meu deficit de ubiquidade não me permite estar com o Benfica e com os All Fama All Stars no mesmo dia. Houve quem argumentasse «ah, mas é só um jogo da Taça da Liga». De novo: sejamos sérios. Mas acham que me rala a designação ou natureza da competição quando quem entra em campo é o Benfica? Reflictam, meus caros.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Não quero mal ao Sporting

Conheço boa parte dos 37 sportinguistas funcionais e convictamente activos que restam. Mais precisamente, conheço quatro. É gente que me merece respeito e é por eles e por calcular que, como eles, existirá mais gente de bem a fazer esta penosa travessia de sabe-se lá o quê para vá-se lá saber onde que me controlo. No entanto, que fique claro que não me esqueço de quem, em tempos quase longínquos, espezinhou e tentou humilhar o Benfica, ao ponto de nos vermos obrigados a mandar um egípcio muito moreno e fininho a Alvalade explicar ao André Cruz como se marca um sacana dum livre, por um lado, e aos sportinguistas em geral, por outro, como se enfia uma rolha inchada num buraco estreito e cheio de gás, como o é o gargalo apertado de uma garrafa de espumante baratucho.

Regressei da tournée londrina com um único objectivo: assistir mais ou menos sentado ao Sporting - Benfica desde o seu primeiro minuto. Foi, aliás, uma viagem toda ela contorcionisticamente encaixada entre jogos: partida na manhã imediatamente a seguir ao Barcelona D - Benfica e regresso a tempo de ver o kick-off de Alvalade. Infelizmente, a linha encarnada do metro de Lisboa é muito mais comprida do que parece nos desenhos e demorei cerca de 57 minutos a chegar do aeroporto a Santa Apolónia, mais 12 minutos a subir meia colina com a mochila a rebentar pelas costuras às costas, o que fez com que tivesse chegado à Típica a horas mais que suficientes para irmos já com três de avanço. Para meu espanto, estava zero a zero e eu pressenti que algo estava errado. Indaguei e concluí que era engano meu, impressão minha, pois o Tacuara estava em campo.

Na balbúrdia apática de quem ganha só três a um a um rival decrépito houve quem declarasse desejar ao Sporting a descida de divisão. Há sempre gente que exagera nestas coisas e eu também não me esqueço de quem, em tempos praticamente medievais, espezinhou e tentou humilhar o Benfica, ao ponto de nos vermos forçados a enviar um maxerrequino escanzelado a Alvalade para demonstrar ao André Cruz como se marca um sacana dum livre, por um lado, e indicar aos sportinguistas em geral, por outro, como se enfia uma rolha inchada num buraco apertado e cheio de gás, como o é o gargalo estreitinho de uma garrafa de champanhota da Bairrada. Porém, sou magnânimo e aprendi com os anos a perdoar. Os meus desejos para esta época não chegam a tamanha crueldade - são apenas três e pela ordem que se segue:

- ir de bigode ao Jamor fazer um piquenique de coiratos, febras e entremeadas antes de entrar - de novo: de bigode - no Estádio Nacional para assistir robustamente à final da Taça;

- ver o Lima fazer um póquer;

- festejar o título de campeão no Estádio da Luz, deixando a rotunda do Marquês vaga para os festejos da manutenção sportinguista.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

The long winding road

Em Dezembro de 1989 sofri como um verdadeiro pecador: uma aftose impiedosa deixou-me as paredes da boca, a língua, as gengivas e até os lábios em completa erupção. Foram quase dez dias de dores, ardores e fome, muita fome. Recordo-me que até respirar pela boca me causava sofrimento. Ao fim dos dez dias, e depois de uns três ou quatro em que já conseguia comer iogurtes e sopas trituradas - mas, ainda assim, frias -, a minha mãe tinha preparado um bacalhau com batatas e couves, cuidando que eu me encontrava ainda enfermo da ingestão e da mastigadura (como eu odiava bacalhau com batatas!) e, portanto, não comeria. Puro engano: àquele bacalhau, nem a pele lhe sobrou. Foi, de longe, o melhor bacalhau que comi na vida - e digo-o sendo hoje profundamente fã desse peixe que o português salga e seca.

Foram também dez dias de febres altas, alguns delírios e uma reclusão tortuosa, em que nem o meu irmão se podia aproximar em demasia, pois o contágio era, julgava-se, não só possível como provável. Sabendo-se da propensão que o meu irmão tem para o azar, para a poça distraída debaixo do sapato, para a pedra aleatória que lhe atinge a cabeça, foi uma decisão sensata.

Posso dizer que, com apenas dez anos, experimentei a loucura de uma solitária - tirando a parte da latrina e da falta de colchão. E de ter vista para a rua e de não sair de lá barbudo - levei 23 anos de liberdade a atingir este estado. Mas, de resto, fome e isolamento não me faltaram. Foi neste isolamento que tudo começou. Naquele tempo, não havia internet nem TV por cabo; havia dois canais e eu só apanhava um. O Lecas era o ponto alto do meu dia. Sozinho em casa, vi-me obrigado a improvisar com os recursos de que dispunha: playmobil e berlindes.

Tinha em abundância de ambos, berlindes e playmobil. Eram mais de duzentos berlindes, para cima de sessenta ou setenta bonecos. Tinha começado, nesse ano, a jogar nos infantis do Desportivo de Mafra. E, durante dez dias, via-me confinado a um quarto, sem poder aproximar-me de uma bola, de um campo - desde muito cedo fui sendo desviado de uma carreira gloriosa pelos relvados dessa Europa. A necessidade aguça o engenho, ou algo do género, e então decidi fazer o meu próprio futebol. Escolhi os bonecos com que mais simpatizava - o louro, com caneleiras, todo vermelho, chamava-se "Paulo" e era o meu alter-ego: n.º 10 à antiga (como em "Eusébio"), num 4-3-3 que tinha tanto de ingénuo quanto de eficiente: era sempre para esmagar. Os bonecos era eu que os mexia - a mão direita organizava o Benfica, a esquerda manipulava desastradamente o seu adversário. As balizas, num tempo em que as redes longas vieram substituir aquelas de pouca profundidade, eram formadas por cassetes áudio: duas, lado a lado, faziam o fundo da baliza; e duas, ao comprido, desde esse fundo até à face de cada um dos postes. BASF, Sony, Maxell, até velhas edições oficiais dos Ministars, dos tempos do meu ATL (uns dois anos antes), tudo serviu de malha lateral, de fundo longínquo, de rede em cujos buracos um dia Rashidi Yekini haveria de enfiar os braços num festejo imortal.

Eu gostava que as balizas fossem bonitas. Por isso, escolhia as cassetes com mais pinta para as construir. Havia uma cassete feia e sem capa que ficava sempre de fora. Não tinha letras nem símbolos nem era transparente, nem de iron: era opaca e não diza coisa alguma.

A solidão e o isolamento trouxeram-me certas experiências e hábitos. Descobri, por exemplo, o silêncio ou a habilidade para esperar, sem impaciência. E foi graças ao silêncio que descobri os Beatles: ao fim de três ou quatro dias de solidão e de conversas muito espaçadas à hora das refeições, senti que havia um vazio sonoro que podia ser preenchido. Peguei no gravador e leitor de cassetes que o meu pai comprara na Dona Nazaré, ali no lugar da Paz, ou que lhe saiu nuns furos, pouco tempo antes, já não me recordo da providência que me permitiu ter um pouco mais de companhia nesses dias tristes e chuvosos.

E foi entre quatro paredes, atormentado por aftas e febres, que introduzi no gravador e leitor de cassetes a cassete feia e sem letras, uma das que sobrava sempre ao improviso daquele estádio de maravilhas sobre uma alcatifa azul que fez tantas vezes de reconfortante relva verde. Lá dentro tinha os Beatles, numa colectânea que lhes atravessava a discografia - Penny Lane, Strawberry Fields Forever, Lucy in the Sky with Diamonds, todo um mundo se abria em meu redor ao mesmo tempo que o meu mundo se fechava cada vez mais sobre o futebol e a paixão pelo fenómeno florescia.

Nesse tempo as equipas inglesas não jogavam na Europa. Desde a tragédia do Heisel, ficaram todas de castigo durante cinco anos - e o Liverpool durante seis. O meu pai explicou-me que era dos hooligans. Percebi razoavelmente o que isso era. O meu pai também me explicou que o Porto só foi campeão europeu porque "não havia ingleses... assim, qualquer um é campeão". Depois, fomos nós a duas finais intercaladas, que não ganhámos. Mas o certo é que, desde que os ingleses voltaram, nós nunca mais disputámos uma final europeia. O meu pai alguma razão lá havia de ter. «Porque», dizia o meu pai, «o que é que são as competições europeias sem um Liverpool, sem um Leeds, sem um Derby County, sem um Tottenham, sem um Nottingham Forest?!». E aqueles nomes ficavam-me na cabeça. O meu pai nunca gostou dos Manchester United. O Arsenal não lhe dizia nada. Apreciava era o Liverpool, sobretudo. Chelsea, City, etc., isso nem existia. E eu jogava com os bonecos da playmobil e ouvia os Beatles e tentava imaginar como seria o Liverpool a jogar à bola, na Inglaterra. O meu pai dizia «aquilo lá é tudo diferente: conduzem pela esquerda e até os estádios são quadrados - parecem caixas de fósforos».

Uns tempos mais tarde, já eu era saudável o suficiente para poder voltar a detestar convictamente o bacalhau com batatas, um amigo meu comprou um Commodore Amiga 500, até hoje o melhor computador alguma vez inventado. E comprou um jogo: Football Manager. Nessa edição, ainda limitada, só se podia escolher clubes ingleses. Ele escolheu o Liverpool. Eu, desfilando os vários símbolos, fui reconhecendo vários nomes que o meu pai mencionava no seu saudosismo pelos ingleses na Europa. Porém, as cores e o símbolo do Arsenal atraíram-me. Perguntei ao Nuno, o dono do Amiga, «estes são bons?» e ele «são... não é o Liverpool, mas são porreiros». E eu escolhi-os.

E foi pouco tempo mais tarde que tive a honra de conhecer o Arsenal. Numa edição confusa da Taça dos Campeões que já era Liga dos Campeões - ou da Liga dos Campeões que ainda era Taça dos Campeões -, o Benfica foi ao velho Highbury, uma caixa de fósforos tal qual o meu pai descrevera, e começou a perder. Mas depois conseguiu empatar, num jogo de grandes nervos. Depois veio o prolongamento e o Isaías fez uma exibição soberba, ganhámos 3 a 1. No final, o público do Highbury levantou-se e aplaudiu de pé o meu Benfica. Ainda hoje me comovo quando penso nisso e lembro-me do que pensei nesse momento: «tão bom...».

Nesse dia, a minha paixão pelo futebol inglês, que já fora semeada ao som da Peny Lane, nasceu. E o meu respeito - porque não: amor adoptivo? - pelo Arsenal fundou-se em definitivo. Desde então, o meu sonho foi ir a Inglaterra ver a bola. Gozando dos benefícios do tempo livre, fui.

Primeiro, fui ver o Tottenham.

Depois fui ver o Liverpool a Upton Park.

Falhei o Arsenal. Mas metade do sonho foi realizado. E ainda ouvi os "hammers" a cantar o Bubbles. I'll be back.