sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Rock n' ball

Regressei a Lisboa depois de cinco dias na minha terra. Cinco dias de glória, que incluíram uma vitória do Benfica, duas vitórias minhas no xadrez em outros tantos jogos e quatro vitórias, robustas e expressivas, em quatro jogos de snooker, perante quatro adversários diferentes (três delas com cheirinho a goleada). Não sei se é dos ares da terra-natal, não sei se poderá ser da esplendorosa comida da minha mãe: certo é que regresso cheio de confiança nas minhas capacidades desportivas, ainda que tenha consciência de que me é muito mais fácil dar um xeque-mate ao 11.º lance ou meter a preta à 5.ª jogada do que fazer um golo no futebol de 7 antes do 20.º jogo (e a minha equipa pode corroborar o que afirmo).

Da ida à minha terra lamento sobretudo a minha escassez de ubiquidade que me impede de uma maneira teimosa de estar com toda a gente com quem gostaria de estar em simultâneo. Quando regresso a Lisboa, sinto sempre que estive pouco com os amigos, com a família, com os próprios lugares onde dantes eu estava sem pensar nisso e de que agora sinto saudades. Compensando, de certa forma, esta sensação de perda, tive a oportunidade de estar várias vezes com um amigo dos tempos de escola. É aquele amigo que acaba por se tornar amigo à força, de tão recorrente que é o convívio. Na verdade, é, talvez e exceptuando o meu próprio irmão, a pessoa com quem mais vezes andei à porrada. Consequentemente, será a pessoa de quem mais vezes apanhei, já que era raro eu levar-lhe a melhor. O João foi um tipo determinante para a consolidação da minha consciência pacifista. Foi sobretudo graças a ele que me surgiu em ideias a máxima «prefere sempre a paz à guerra, principalmente se na guerra estiveres sempre a comer».

Tornámo-nos amigos ainda na adolescência. E fomos sempre os opostos um do outro. Ele era do Sporting, eu nasci de acordo com o que manda a natureza; ele era dos Metallica, eu era dos Nirvana; ele veio a ser baterista, eu toco guitarra e canto. E foi graças a estas diferenças, todas misturadas, que pudemos passar três tardes fechados no seu estúdio, ele na bateria, eu à guitarra, cada um com suas funções, ideias e influências. Tivéssemos ambos sido guitarristas influenciados pelos Rancid, o mais provável era termos passado três tardes fechados na garagem a beber cerveja e a falar de como o punk era bom nos anos 90, com as guitarras ao lado à espera de ganhar utilidade.

Foi com o João que vivi a minha primeira experiência pop. Jogávamos os dois à bola, na equipa da então Escola C+S de Mafra. Ainda não nos dávamos muito bem. Estávamos no 9.º ano e disputávamos a Distrital de Desporto Escolar de Lisboa, que daria acesso à Regional de Lisboa que, por sua vez, acabaria por permitir a passagem ao play-off nacional. Ganhámos a distrital, mas ficámo-nos pela regional. Num dos jogos mais importantes, contra a equipa que rivalizava connosco, fomos a uma escola de um pequeno concelho da zona Oeste. Estávamos habituados a jogar na nossa onde o facto de decorrer um jogo dos campeonatos de Desporto Escolar não era propriamente motivo para folgas nem pausas: ia assistir quem tinha hora livre. Ali, não: a escola parou e assistia em peso ao grande confronto.

Chegámos na carrinha do nosso treinador, professor de Educação Física cujas noções tácticas se inclinavam muito mais para o surf do que para o futebol, mas que era um tipo porreiro e que gostava muito daquilo. Fomos imediatamente recebidos por uma comitiva de maldispostos e bem alimentados rurais que lançou ameaças e piadas - nós vínhamos de Mafra, atenção. Mafra é uma espécie de território perdido, algures entre o ser subúrbio e o ser rural, mas que impressionava quem vinha de sítios mais rurais do que o nosso porque parecia uma cidade cosmopolita, com semáforos e tudo. Já lá vão muitos anos. Agora até temos auto-estradas, só para terem uma ideia.

O ambiente da escola era bastante hostil e a população numerosa, que devia reunir todos os adolescentes do município que não tivessem reprovado na quarta classe, intimidava bastante. O nosso balenário ficava numa cave, na última porta de um longo corredor, próximo do campo mas não propriamente contíguo - ou seja, teríamos de nos equipar e depois atravessar a multidão. Esta ficava separada do recinto de jogo por uma corda à altura da cintura, atada a pequenos postes, a toda a volta do campo. Equipámo-nos no tal balneário, uma espécie de arrecadação que nem bancos tinha e tivemos de pendurar em cada um dos cinco cabides ainda inteiros as roupas de cada dois dos nossos jogadores.

Já equipados, percorremos o longo corredor, subimos as escadas e dirigimo-nos ao campo, acompanhados por uma espécie de escolta de professores autóctones que furavam a multidão. O campo era assim: pequenino, substancialmente inclinado para uma das balizas e cheio de buracos. Para além de buracos, existiam ainda grelhas de esgoto que, pisadas no sítio ideal e com a força certa, produziam aquele efeito Looney Toons que produzem os ancinhos quando são pisados nos dentes. Tenho ideia de um dos nossos se ter lesionado logo de início por entrada imprudente de uma dessas grelhas. Aos cinco minutos já perdíamos por um e o jogo estava a ser um pesadelo, até porque começámos a jogar de baixo para cima.

A arbitragem, em perfeita sintonia com todo o panorama, estava a ser miseravelmente caseira. Ainda assim, aguentámos aquela magrinha desvantagem até ao intervalo. Recolhemos à arrecadação animados por insultos, graçolas e gozos, o que numa pequena vila de província orgulhosamente marcada pela produção (e, por que não, pelo consumo?) viti-vinícola é o mesmo que dizer que fomos enxovalhados com muito maus modos e expressões que, infelizmente, não recordo na totalidade - nem sabem o jeito que me davam para animar esta longa narrativa.

Reunidos na arrecadação, o professor tentava incentivar-nos, dar-nos coragem, inflar-nos com esperanças mais ou menos poéticas, «vocês conseguem, pá... eles não jogam assim tanto», mas o sentimento geral, ainda mais sem o nosso melhor jogador, era de profundo desamparo, de isolamento num planeta que nos era adverso. Queríamos ir embora dali. Cheguei ao ponto de pedir para não jogar mais, «não, Diego, estás a jogar bem, aguenta-te». Não insisti para não parecer mariquinhas. Mas a minha vontade de subir ao campo era quase zero e penso que só a ideia de jogar de cima para baixo acabou por me dar algum alento.

Regressámos ao campo, sempre acompanhados de gestos, ladaínhas e palavras de apreço que, se acontecessem em frente ao Palácio de S. Bento, poderiam gerar uma carga policial justificada. Começa a segunda a parte e o árbitro descobre um penalty contra nós num lance em que o Besugo, que fazia parceria comigo na defesa, leva uma porrada e cai, com o braço enrolado, sobre a bola. Isto dentro da área. Penalty, pois. Eu pedi para sair, que aquilo era uma vergonha, o professor não aceitou a minha demissão e disse-me «a gente consegue, temos é de acreditar» e eu acabei por ficar, mais por compaixão por ele do que por crença. Aplausos e assobios, cânticos vitoriosos, de tudo se ouviu. O jogo estava perdido. Porém, os gritos histéricos vindos de vozes estridentes despertaram-nos para uma realidade nova: também havia ali miúdas. Esta percepção, aos 13 anos, muda muita coisa. E então, ao apito do árbitro amigo, o avançado rural correu para a bola e bateu com força - mas o Banana defendeu com estilo. Era uma nova vida, sorrisos, abraços e uma esperança inédita em cada um de nós: a bola não entrou, porra!

O jogo mudou nesse momento e até o público ficou mais mansinho. Tínhamos a bola e tentávamos fazer golos. A descer fica tudo mais fácil e eles pareciam amedrontados, sobretudo depois de falharem a soberana oportunidade para fazer o 2 a 0. As vozes das raparigas eram já mais audíveis do que as dos rapazes quando sucede o lance, aquele lance que muda a tua vida. Não tenho muito presente a forma como tudo se desenrolou. Nestes momentos, o intelecto desliga-se e deixa que o corpo seja máquina, seja instinto, seja animalidade e depois damos por nós a fazer qualquer coisa quando despertamos do choque de adrenalina. Dei por mim a festejar um golo. Quando todos se dirigiram a mim para festejar euforicamente, percebi que tinha sido eu a marcá-lo. Eu, que nunca arriscava sequer um remate, marcara ali, naquele campo de batalha inclinado, contra todas as probabilidades.

O jogo terminou com o empate: um a um, o que num jogo de futebol de 5 entre miúdos de 13 anos demonstra bem o nível aguerrido e disputado a que se jogou cada lance, cada bola, cada entrada dura das grelhas das sarjetas. Estávamos felizes, vitoriosos, realizados, mesmo vingados. E com medo. Íamos ter de sair do campo, os professores adversários, descontentes com o desfecho, discutiam com o nosso professor. Ânimos exaltados em todo o lado, alunos a mandar bocas, a rodear-nos, e nós a seguirmos rapidamente para a arrecadação onde tínhamos a roupa, na cave, ao fundo do longo corredor. O professor ficou para trás, deu-nos a chave e nós seguimos.

Não houve direito a duche, claro. Nem chuveiros havia ali. Enquanto nos vestíamos, suados e a celebrar um empate que soube a conquista, fomos ouvindo o burburinho crescente à nossa porta. Às tantas, adivinhava-se uma multidão a encher o corredor. A nossa alegria transformava-se, aos poucos, em palidez e a palidez em medo e o medo em qualquer tipo de desespero: sem janelas, sem outra porta, sem professor, estávamos encurralados e à mercê de toda a escola C+S da Arruda.

Entre os sorrisos nervosos à espera que o professor regressasse, um bilhete manuscrito passou por baixo da porta. Vinha dobrado. Alguém, que não eu, pega no papel e lê «n.º5 e n.º7 venham cá para fora». O n.º 7 era eu, inspirado no Vítor Paneira. O 5 era o João - penso que por causa do Fernando Couto, na altura ainda no Porto (não era do Sporting mas era mau e tinha estilo). Tudo se transformou num caleidoscópio negro de terrores. No dia em que eu marcara um golo a defender as cores da escola da minha terra, senti que talvez tivesse sido melhor não o fazer.

O professor chega. Entra sorridente e diz «está tudo resolvido, eles estavam chateados mas isso passa-lhes». Respondemos que o corredor está cheio e que estão a pedir as nossas cabeças, a minha e a do João. «O quê, aqui fora?! Isto é tudo miúdas, pá». Abriu a porta e era verdade: miúdas. Mesmo vendo, não dava para acreditar. Montes de miúdas. Saímos da arrecadação, em fila. Eu e o João fomos puxados, agarrados, quase engolidos. Fomos levados para cantos. Pediram-me beijos e o número de telefone. Isto, várias raparigas e em grupos, tudo compacto, tudo ao monte. E não conseguia sair dali. A perplexidade, a surpresa, a satisfação do ego, tudo se misturou com algum medo e com a pressa de ir embora. Por fim, consegui soltar-me e passar. O João também acabou por chegar cá fora, trazido por um colega nosso, mais robusto.

Tenho a certeza que foi nesse dia que a nossa vida mudou. Queríamos ser futebolistas. Isso era certo, desde sempre - ele no Sporting, eu no Benfica. Mas aquele sabor da pop foi mais forte. Um ano depois, o João tinha a sua banda thrash-metal cujo nome era o título de uma canção dos Sepultura. Pouco tempo depois, eu comprava uma guitarra e fundava, com outros três, os Kindergarten, que puxava mais ao grunge. Ontem, anteontem e no dia anterior estivemos os dois fechados num estúdio, ele na bateria, eu na guitarra e na voz. Acredito que isso se deva a este jogo de futebol.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Religião, desemprego e estratégias alternativas

Eu não queria ofender ninguém, muito menos mexer com as sensibilidades religiosas de cada um - este é um sítio de respeito e que, assim, tem de dar-se ao respeito. É por isso que aqui deixo o meu pedido de desculpas a quem, de entre Cristãos Ortodoxos, se apoquentou com a acção preventiva de acondicionar seguramente o cachecol do Spartak numa caixa de cartão de formato peculiar. Reconheço que a falta da Cruz Bizantina foi uma falha e lamento por, num descuido, ter corrido o risco de melindrar alguém.

Aos apostólicos romanos que se insurgiram, gostaria de descansá-los: não, não enterrei a caixa. Está aqui ao meu lado e posso reutilizá-la, sem qualquer problema, caso tenha de devolver a guitarra. Não está sequer suja ou danificada. Acrescento, para qualquer crente, que tudo não passou de um exercício espontâneo - supersticioso, sim, mas sem malandragem nem voodoo, sem maldição nem orixás.

O mais curioso é que tudo isto aconteceu graças ao meu despedimento. E é ainda mais curioso que algo tão nefasto e desmoralizador acabe por vir a produzir consequências tão positivas. Por exemplo, o facto de ter tempo livre permitiu-me deambular por Lisboa em busca de coisas abstractas, que é como quem diz, andar à deriva sem qualquer objectivo. Por acidente ou curiosidade, ou até sorte, entrei numa loja de instrumentos. Isto sucedeu precisamente uma semana antes do jogo de quarta-feira. Foi nessa loja que encontrei à venda uma guitarra que eu desejava há mais de um ano. Porém, em ocasiões anteriores, nunca tive a disponibilidade financeira para investir na melhoria do meu património. Desta vez, tudo foi diferente, já que fui pago para deixar de trabalhar. E assim, com o dinheiro que me dão para estar sossegado, comprei a guitarra. Vejam nisto um investimento em ferramentas de trabalho, porque é disso que se trata, e não um capricho consumista.

Não tinha como transportar a guitarra até casa e recusei-me a comprar-lhe um Rockbag, até porque tenho um, ou uma hard-case, que seria despesa exagerada. A simpatia do vendedor da loja fez com que me fosse dispensada a tal caixa mágica que a fotografia do post anterior mostra para que eu lá pudesse guardar o instrumento praticamente virgem e, assim, levá-lo para casa em segurança.

Há toda uma conjugação de factores que fará os mais cépticos ter arrepios na espinha, bem sei. Mas ainda não é tudo: a guitarra chama-se Hell Cat e não fui eu que lhe dei o nome, foi o próprio Tim Armstrong.

Ponham-se no meu lugar: olhando, por exemplo, para um meio-campo que parecia designado pela própria Isabel Jonet - chegámos ao ponto de de lá meter portuguesinhos! -, não teriam vocês mesmos tirado proveito desta conjugação cósmica para dar uma mãozinha ao Benfica? Acresce que o ritual foi absolutamente experimental, nunca tinha sido antes testado nem em animais. Pareceu-me legítimo aproveitar os artefactos e simplesmente conjugá-los da maneira correcta. Como, aliás, fez Jorge Jesus com os homens que escolheu para o jogo e que, à partida, também não lhe garantiam grande coisa.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Arrumações

Tenho um cachecol do Spartak de Moscovo. Não é aquisição recente. Trata-se de uma compra que fiz numa época distante. O Benfica tinha no meio-campo um velhinho espanhol chamado Chano, por exemplo, e eu começava a duvidar do meu clubismo - o caminho da fé não é feito de certezas, é feito de paixão. Por outro lado, havia um clube, o Sporting, que estava na Liga dos Campeões e os seus adeptos meus amigos e conhecidos teimavam em demonstrar-me, explicar-me, educar-me e chatear-me o juízo com exemplos, factos e histórias do seu clube, poderoso, forte e muito nobre. Depois aconteceu Champions e o Spartak deu-lhes três a zero. Em Alvalade. Um dos golos foi do Dimas na própria baliza (respect) e os outros dois do maestro Titov.

Dias mais tarde, à entrada do refeitório da minha faculdade, havia uma espécie de feira - umas bancas com aqueles artesanatos e jóias hippies, raparigas com tererés, djembés de enfeitar, cachimbos de água, missangas e um cachecol do Spartak. Optei pelo cachecol - até hoje não sei explicar porquê, mas também não me arrependo: é encarnado e branco, o que compõe muito bem a colecção, por entre os seis ou sete do Benfica, mais o gorro, os boxers e os dois jerseys (um é verdadeiro - n.º 10 Aimar, outro é da candonga e não diz porra nenhuma, mas é óptimo para as futeboladas e dá-me sempre muita sorte).

Hoje, porém, não é dia de deixar uma cachecol destes à mostra. Assim, antes de ir para o Estádio (com um bilhete que o meu amigo Manuel, furioso Benfiquista, gentilmente me ofereceu), decidi guardar o objecto numa caixinha adequada.