quinta-feira, 29 de março de 2012

Em câmara lenta, como na SportTV

Na repetição, pode ver-se como Tacuara avança sem oposição até fazer o golo, depois de Gaitán ter ludibriado a defensiva contrária. Uma jogada de laboratório!

À mestre da táctica

O nick dele era djalma1963 e eu pensei "tudo bem, não é nenhum Lucho1980, mas faz as vezes". Conto esta história com orgulho mas sem vaidade, o meu caminho é o do aprendiz. E o do experimentalista. O meu sonho é, desde há muito, introduzir o futebolismo fervilhante no jogo morno do xadrez. A ocasião pareceu-me adequada, atentando no apelido desafiante do adversário.

Pontapé de saída e eu avanço suavemente com o peão para e4, a guardar a saída do extremo direito, um cavalo que tenho chamado Gaitán. Desde cedo percebi que seria ele a chave do sucesso. O desenrolar foi natural e a serenidade só se quebrou quando, na coluna da dama (a Tacuara), avanço o peão para d4, um engodo singelo. Djalma reagiu impetuoso, entrou de carrinho e comeu-me o peão. Gaitán foi e fez-lhe a folha com naturalidade. Vantagem para a equipa da casa logo aí.

Do lado oposto, reinava a confiança. Transparecia de Djalma um sentimento de superioridade, uma soberba que, de resto, não passaria impune. A partir daí, Gaitán foi fazendo cabrioladas e toques de calcanhar desarrumando toda a linha defensiva de um adversário que não se enxergava, que jogava o jogo pelo jogo na certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a minha equipa cometeria um erro defensivo de palmatória permitindo o avanço inexorável de um ataque claramente transbordando moral.

É então que o bispo do Eusébio - esse que não joga, mas que ainda impõe respeito -, Maxi, entra em acção com uma diagonal exemplar, baralhando as marcações de Djalma. Passou nas costas de Gaitán e tomou a dianteira em c4. Uma vez mais, era engodo: nesta fase, a coluna de Tacuara estava aberta e segura, não havendo marcação possível ao temível avançado. O ataque final estava perto.

E é este o momento em que gostaria de chamar a atenção de Jorge Jesus: eu poderia ter optado por forçar o ataque até à baliza, mas o risco era ainda grande. Apesar do excesso de confiança de Djalma, preferi jogar pelo seguro: o cavalo de Djalma em e5 ainda podia criar-me problemas, caso eu decidisse avançar para a área de imediato. Procedi à circulação de bola, desarrumando esse cavalo com o regresso de Gaitán à direita.

Fi-lo com a maior classe: libertei o cavalo na meia direita, atacando o cavalo opositor - mas não levava guarda, Gaitán estava sozinho, era um alvo fácil. Engodo, claro. Djalma, porém, sentindo-se superior, leu o meu jogo como um erro (por esta altura, havia um empate a um peão em 12 lances) e optou por apostar na superioridade numérica: deu-me o golpe com o cavalo de e5 em Gaitán (g4) - um 2 a 1 para Djalma perfeitamente ilusório -, deixando uma diagonal aberta e indefesa para Tacuara surgir na cara do golo, protegido por Maxi em c4.

Tacuara avançou sem oposição, recebeu a abertura, dominou com toda a calma, e, completamente sozinho, aos 14 lances de jogo, desferiu o golpe letal em f7. Foi só encostar para a baliza deserta.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Jogo atípico

Uma equipa de Portugal que não tem um único português defrontou uns ingleses que pertecem a um russo, que jogam à italiana e que ganharam com um golo de um costa-marfinense - assistido por um espanhol. Naturalmente, a partida foi confusa.

E a caravana parte

Há poesia naquele momento desolado. Copos de plástico, latas de cerveja, guardanapos de papel – lixo fresco ao abandono varrido pelo vento. Atrelam-se as roulotes e a noite acaba-se. Restamos nós, conversadores absolutos do Benfiquismo. Nós e as nossas barbas. Vamos embora sem vitórias, descontentes com um pouco de tudo, reconfortados com bocadinhos de nada.

Somos os crentes. Fingimo-nos pensadores e atiramo-nos ao mundo com pesada expressão céptica. Porém, noite após noite, ali estamos nós, cheios de fé, cheios de paixão, mesmo depois de o jogo ter acabado, mesmo depois da derrota magra e amarga. A desconfiança firme dura até faltarem 15 minutos para o jogo começar. Daí em diante, evapora-se, desfaz-se sob o coro encarnado. Daí em diante, tudo é convicção e não há factos que nos desmintam. Somos capazes, tudo é possível, acreditar até ao fim!, vamos a eles!, ainda faltam três minutos!, sobe Artur, sobe, porra! O Artur sobe “agora é que é, pá, agora é que é”. Mas não é. Ainda faltam 12 segundos, calma que ainda vamos lá.

Acaba o jogo e eu sei, eu era capaz de jurar que ainda é possível empatar e, com uma pontinha de sorte, dar a volta a isto. Chegamos às bifanas, trocam-se impressões, há opiniões para toda a gente. Com a imperial a um euro, é apenas uma questão de tempo até haver mais do que uma opinião por assunto por pessoa. Pelos olhares meio escondidos de nós todos perpassa uma ideia: e se voltássemos lá, ahn? Se voltássemos lá? Se calhar ainda era possível. Às vezes acontecem coisas estranhas. Vamos voltar lá. Só falta um golo, um golo, pá, e a gente empata isto, faz lembrar o Arsenal – depois vamos a Inglaterra e viramos a coisa.

Desligam-se as máquinas e a cerveja morre. O M., que lida com coisas sérias todos os dias, diz «o mais difícil é ter de lhes dizer ‘olhe… isto não tem solução, é uma questão de meses’, isso é o que mais me custa». No entanto, as máquinas desligam-se mas a gente ainda acredita. Claro que sim. Vamos para o metro e eu apostava, eu apostava!, que, mesmo depois de as caravanas partirem, mesmo depois de as luzes se desligarem, todos nós ainda acreditávamos que o Tacuara podia esticar o pé e fazer o empate ou que o Jardel repetia a cabeçada, mas desta vez acertava em cheio. Era só tentar. Tentar não custa. O que é que custa tentar?

terça-feira, 27 de março de 2012

Diálogo matinal

Pela manhã, ao balcão da Alfacinha. Um inglês, com um galo de Barcelos numa mão e um cachecol do Chelsea na outra, repara no cachecol do Benfica que trago dobrado no bolso. Resolve meter conversa.

-Who's the best, Benfica or Porto?
-I'd rather not talk about that...
-Why? Are they first in the league?
-Nope.
-Then you are.
-Nope.
-No?! Who is it, then? I thought this was between you and them.
-We all did. We were wrong.
-I'm affraid i don't know any other portuguese teams. Tell me, who's first in the league, then?
-It's Braga.
-Come again?
-Braga.
-Really?! Amazing. I always thought they were czech.

domingo, 25 de março de 2012

52 horas

Estou feliz. Pode parecer uma teimosia ou uma desconsideração por surgir em contraciclo afirmando-me feliz. Mas a verdade é que estou mesmo feliz e gostava de partilhá-lo convosco.

Faltam pouco mais de 48 horas para ir ao Estádio da Luz. Já não vou ao Estádio da Luz desde Fevereiro. É uma longa ausência para alguém que, como eu, se tem fisicamente aproximado mais e mais do Benfiquismo. Ser do Benfica eu sempre fui. Primeiro ingenuamente e à distância, depois menos ingénuo e mais assíduo, mais tarde cheio de consciência e com alguma regularidade no ritual de ir a Casa. Finalmente, habitante da Catedral na maior parte dos jogos. Foi um processo demorado e gosto de pensar nele como uma forma de crescimento. Se crescemos como homens, também podemos crescer como Benfiquistas. Ser Benfiquista não é uma condição estática. Um Benfiquista progride.

Faltam pouco mais de 48 horas para ir à Luz com os meus amigos. Depois de todo este crescimento Benfiquista, sinto uma alegria infantil por fazer precisamente aquilo que se tornou mais habitual: ir ao Estádio com os meus amigos. Vocês não imaginam a minha felicidade. Quando tinha 9 anos e faltavam dois dias para ir de férias para a costa alentejana, sentia-me inquieto, agitado, expectante, ansioso - e feliz, mas de uma felicidade que não se contém, que dá pulinhos, que se ri sozinha e que se esquece da comida no garfo porque se perde a imaginar como vai ser, o que vamos fazer, vai ser tão bom!

Daqui a dois dias vou ao Estádio da Luz com os meus amigos, vamos beber uma cerveja antes do jogo e duas depois do desafio, quer ganhemos quer não. Sinto-me feliz por ser do Benfica e por ter estes meus amigos Benfiquistas com quem partilho estes momentos, estas ocasiões. E podemos perder ou ganhar, sair contentes ou cabisbaixos. Mas a felicidade de estarmos juntos a ser do Benfica é qualquer coisa de extraordinário e de maravilhoso nesta vida. Vocês não imaginam o quanto é bom ser do Benfica e faltarem 52 horas para ir ao Estádio da Luz com os amigos ver a bola, os quartos-de-final da Taça dos Campeões, contra os ingleses, é o Chelsea, e temos esperança. O Benfica pode ganhar. Também pode não ganhar, tanto faz. Estaremos lá e eu emanarei felicidade pela simples razão de poder lá estar.

quinta-feira, 22 de março de 2012

A caminhada

O sol está agradável mas a caminhada é demasiado longa. Quarenta e três minutos a pé. Sem Fante, sem xadrez. Hoje não é dia de ler nem de pensar. Hoje é dia de caminhar. Atravessar meia Lisboa sem metro, sem autocarros. Há greve em todo o lado. A greve é geral, o povo é quem mais ordena. O Diego quer ler mas não lê, o Diego que se lixe, o Diego que vá a pé, o Diego que tonifique os gémeos. Atravessa-se a Baixa e parece que o mundo está de férias. Estrangeiros a fazer turismo, excursionistas da CGTP a fazer mais ou menos o mesmo. É bom para o negócio. É bom para os pedintes. É bom para os ciganos a vender xámon e óculos de sol. Pena o faquir não estar aqui, esta malta revolucionária ia adorar.

Vejo-os de bandeirinhas e t-shirts alusivas, bonés e óculos escuros, lancheiras e copos de plástico, sentados ao sol, estendidos ao sol, arrebanhados ao sol. Estão a manifestar-se e a fazer greve. Estão a lutar pelos direitos das pessoas, dos trabalhadores. Todos os meses fazem isto e têm-se dado bem com o tempo. Por eles, estávamos todos cheios de direitos. Era direitos a transbordar. Eu tenho o direito de ir pé! Eu vou a pé! Obrigado, CGTP. Atravesso o Rossio pelo meio deles e sinto vontade de pegar no megafone e «EU PAGO 29 EUROS DE PASSE E TENHO DE ANDAR 4 QUILÓMETROS A PÉ PARA IR TRABALHAR, CARALHO! E É SEMPRE A SUBIR…» mas acobardo-me, eles são muitos e estão revoltados. Compreende-se a revolta. Aprecie-se o ritual. Aceite-se a greve, a manifestação e a caminhada. Encare-se tudo com espírito cívico e um sorriso no rosto. Uso o truque: penso «viva o Benfica!» e animo-me. Sorriso na cara, automático.

Estão todos a fazer greve, a defender os direitos de todos os trabalhadores, os direitos de todo o proletariado. Menos dos jornalistas. Os jornalistas, esses, estão a trabalhar para cobrir a greve. Há jornalistas que pagaram do próprio bolso para irem trabalhar. Foram de táxi, à burguês. Para fazer da greve notícia. Outros foram trabalhar a pé. Se os jornalistas fizessem greve, todos eles, como seria amanhã? Sem jornais a dizer o quão grandiosas e poderosas e furiosas foram a greve e a manifestação. «Sempre houve greve ontem?» «ah, não sei, não há notícias e eu ontem nem saí de casa, meti o dia para não mo descontarem, aproveitei que ia ser greve». Ao ritmo a que as fazem, um dia as greves deixarão de ser notícia. Quando esse dia chegar, também os jornalistas poderão fazer greve. Ninguém quererá saber, de qualquer modo.

Nos degraus do Dona Maria, uma pequena tribo de grevistas equipa a rigor: boné vermelho, t-shirt vermelha, bandeira vermelha. Tudo vermelho. Se eu fosse de uma central sindical, seria da CGTP. Equipam com bom gosto. CGTP! CGTP! CGTP! Vermelho é vermelho, seja no Rossio ou na Luz. Pela rua, há mais bandeiras vermelhas e outras pretas. Prefiro as vermelhas. Um dos homens sentados nos degraus tem a edição Norte do jornal O Jogo. “Fazem bloqueios sim senhor” diz a manchete. No quiosque mais próximo só existe a edição Sul “Mais letal que nunca” – a capa é o Tacuara de costas a festejar um golo. Os “bloqueios” são remetidos para um canto da página. Como que envergonhados. Pudera.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Ninguém escreve ao 227218

Estava à espera do metro e não tinha xadrez para jogar. O mal destes jogos online é que podem demorar muito tempo. Resolves os lances e o adversário tem, pelo menos, 24 horas para reagir. O metro costuma demorar menos de 24 horas a chegar, apesar dos atrasos cada vez maiores e mais recorrentes. Não me apetecia pegar logo no Fante, então comecei a vasculhar a caixa de mensagens para ocupar o tempo. Com estranheza, notei que o Cristiano não me mandara qualquer mensagem sobre o jogo. Nem ele nem outros portistas que gostam de comentar futebol comigo por SMS.

Depois, a estranheza transformou-se em tristeza, porque há momentos em que gosto de receber as mensagens deles. Talvez estivessem sem saldo. Eu costumo estar sem saldo no telefone por esta altura do mês. Ou então nem viram o jogo, talvez tivessem coisas mais importantes para fazer. Eu sei que há certas competições que não interessam muito aos portistas. A Taça da Liga. A Liga Europa. A Liga dos Campeões.

A estrutura do Porto procede com rigor à gestão dos seus recursos, de modo a obter o máximo rendimento do seu onze-base na altura fulcral da época. Vão-se deixando eliminar progressivamente de cada uma das provas até que em Março estão completamente livres e disponíveis para disputar o campeonato nacional com elevada eficácia competitiva.

Ontem, no entanto, enviaram um kit de treino surpreendentemente semelhante à equipa principal. A diferença maior esteve mesmo na baliza, onde os postes com que jogaram mostraram uma capacidade técnica que, até aqui, não lhes tinha visto. Talvez devesse haver mudanças na baliza do Porto, claramente há ali talento. Por outro lado, os barrotes da retaguarda contrastaram sobremaneira com o poste sossegado que os portistas lançaram no ataque.

No fim, marcámos poucos e sofremos em demasia. Deu para ganhar, mas custou-me ter de recorrer a Cardozo para meter as coisas no seu devido lugar: a bola lá dentro, o Benfica na final e o Porto em repouso.

terça-feira, 20 de março de 2012

Se não vais à final da Champions...

... traz a final da Champions até ti. Estou profundamente orgulhoso, devo dizer-vos. Profunda e emocionadamente orgulhoso.

E espero que escarneçam vilmente de mim daqui a uns meses, sob o pretexto de «ai não íamos? Ai não íamos?». Por favor, sintam-se à-vontade.

Fante e Xadrez e nada mais

Estou contente por não estar a pensar no jogo. Estou bestialmente contente por nem tocar no assunto, por não querer saber do jogo. Estou distraído, ando a pensar na Primavera e em outros assuntos. Acordei, vesti o que estava à mão. Não pensei em sortes nem azares. Comportei-me com toda a normalidade, fui uma pessoa natural. Comi o que é costume, bebi o café habitual. Não andei pela rua com atenção ao pé que pisa primeiro o passeio, que deveria ser o mesmo com que entrei na estação e, mais tarde, nas escadas rolantes e em cada uma das carruagens.

O Cristiano estava no metro. Continuei a jogar xadrez no telefone, fingi que não o vi. Suponho que ele tenha feito o mesmo, fingiu que estava a ler um livro e a ouvir música. Muito hipster esse Cristiano. Livros e música nos ouvidos. Andrade dum cabrão. Aposto que também fingiu que não me viu, era impossível não me ter visto. Hoje não lhe falo. Só se ganharmos. Só se ganharmos por muitos. De qualquer modo, nem estava para conversas. Também ando a ler. Para me distrair. Assim, evito pensar no jogo. Ando a ler o John Fante.

Gosto do John Fante. É um pequeno patife sem heroísmo. Gere a maldade com a doçura de quem nada sabe da vida. E isso tem a sua beleza. No xadrez, estou a recuperar. A recuperar a auto-estima, quero dizer. O meu ranking continua embaraçosamente mau e todos os dias dou graças por os meus pais não estarem inscritos no Chess.com. Mas tenho jogado contra jogadores do meu calibre e sou claramente melhor do que esses miseráveis. Convenhamos, é gente com um extraordinário talento para o erro, para a derrota. Mas essas vitórias dão-me alento, invariavelmente. Pensei nisto por uns momentos e deixei a rainha à mercê de um cavalo. Arruinei o jogo.

«Por vezes os bidões são traiçoeiros, por vezes os bidões são traiçoeiros, por vezes os bidões são traiçoeiros, por vezes os bidões são traiçoeiros, por vezes os bidões são traiçoeiros, por vezes os bidões são traiçoeiros, por vezes os bidões são traiçoeiros». Não há desculpa que me salve nem deslize que, justificando o desaire, me anime. Só a vitória me dá alento. Só a vitória me dá alento. Só a vitória me dá alento.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Não se distraiam com os coletes

Conta-se entre Benfiquistas, com agradável e sorridente maldade, a peculiar história de um treino de uma equipa lisboeta – cujo nome não vou dizer – durante o qual, no decurso de um ensaio de posicionamentos e triangulações contra 11 bidões dispostos no terreno, se conseguiu o inimaginável. O episódio não é tão dramático quanto se possa pensar, até porque o primeiro lance correu na perfeição e chegou-se ao golo com naturalidade.

O pior veio depois. Quando a bola foi ao meio-campo, e não havendo adversário, um dos avançados decidiu chutar para o seu guarda-redes, para que se reiniciasse o processo de progressão no terreno de jogo. A bola ressaltou num bidão atacante e o keeper, distraído – porque não esperava, logicamente, qualquer remate –, deixou a bola entrar. A situação deixou irado o treinador da equipa, que ordenou o fim do exercício entre gritos e juras, ordens caóticas e uma panóplia de gestos complexos, porém fáceis de decifrar. Resultado: um a um ao apito final.

Serve o mito urbano do “empate contra os bidões” para introduzir o assunto tradicional desta época do ano: o desdém que algumas equipas nutrem pela Taça da Liga. Não o meu, que eu mantenho pelo troféu um apreço especial. Sinto-o como Nosso. Pode ser pequenino, pode ser jovem e imberbe, mas gosto dele, mais que não seja por conter a inscrição “Sport Lisboa e Benfica” – e logo três vezes.

Espero que Jorge Jesus mantenha os jogadores em alerta contra o kit de treino com que, aparentemente, o Porto se vai apresentar em campo amanhã. É que, às vezes, os bidões são traiçoeiros. E, em relação à Taça da Liga, entre “ganhá-la” e “não a ganhar”, eu prefiro a primeira hipótese.

terça-feira, 13 de março de 2012

Pequeno prevenido

-Oh, não! Pequeno Vermelho! O que é que tu estás a fazer?!
-Master… não te ouvi entrar.
-Porque pairo sobre o planeta como uma raia se move rente ao fundo dos oceanos. Sai já de cima desse banco! E larga essa gilete, imediatamente! Mas o que é que tu pensas que estás a fazer?
-Parece-me bastante evidente, querido Master, que faço a barba.
-A tua insolência serve apenas para agravar os meus nervos. Mas QUAL barba, minha parcela infinitesimal de Glorioso Espírito? Qual barba, criaturinha encarnada e imberbe?
-Inspirado pela tua experiência que, apesar de desastrosa, me trouxe inspiração, tomei uma decisão: também eu quero, um dia, conhecer o Senhor Coluna e, para tal, achei por bem fazer a barba preventivamente.
-Oh Mãe de Eusébio…
-Desfazer a barba preventivamente. Nunca percebo: fazer ou desfazer a barba?
-É um interessante preciosismo esse teu, personagem minúscula. Porém, neste momento, vais lavar essa cara e tirar todo esse creme do rosto. Que insanidade…
-Quem faz a barba é o meu organismo, impulsionado pelo meu espírito; eu desfaço-a. Ou não?
-Não desfazes coisa alguma, Pequeno Vermelho. O teu rosto tem menos pêlos do que a casca de um pêssego careca.

segunda-feira, 12 de março de 2012

O sol e as barbas

O sol da tarde no Estádio da Luz é diferente de todos os outros. É um sol que já lá está há muitos anos. Que me lembre, sempre ali esteve e quando ali regresso é como se regressasse à velha casa da família. A casa mudou, é mais moderna. Mas também é menos arejada e ainda tem pouca história. Na outra, apanhava-se mais sol e tudo era maior, principalmente o passado. Sinto saudades.

Falávamos disto enquanto olhávamos para os miúdos de dez anos, cheios de talento, cheios de sonhos, cheios de potencial, cheios de futuro pela frente, pequenos abençoados com a sorte de jogar à bola ao sábado à tarde na Luz, com a camisola do Benfica. Ao mesmo tempo, lá dentro, Velhas Glórias do clube aturavam-nos com pachorra e entusiasmo. Vivemos nisto, um pé nas expectativas, o outro nas memórias.

Vamos tendo menos dias pela frente à medida que vamos ganhando novas histórias para contar. Gosto de imaginar graficamente a minha vida e aquele ponto máximo antes da curva descendente: o dia em que terei exactamente os mesmos minutos de recordações e de tempo de vida. No momento seguinte, já não terei tempo para contar todas as histórias que guardo. E a seguir a esse momento terei mais história e menos tempo. E por aí fora, até estar cheio de histórias não ter tempo para as contar.

Os Senhores com quem estivemos têm muitas histórias. Pela ordem natural das coisas, já não têm tempo para contá-las a todas. E sabem disso. É, portanto, com admiração e uma saudável mágoa que ouço Rogério Pipi contar todas as histórias que pode, como se quisesse oferecê-las, esbanjá-las, espalhá-las pelos seus netos. Com urgência, porém sem pressas. Há heranças que não se deixam em testamento e detalhes que não aparecem nas entrevistas. Temos de nos sentar e escutar, guardando com muito cuidado todas as palavras ouvidas. São o nosso património. Mais do que os Estádios, as televisões, as estátuas ou até mesmo os troféus, o Benfiquismo alimenta-se das suas memórias relatadas pelos seus protagonistas. O lado familiar sobrepõe-se à instituição clubística.

O meu avô Evaristo – «estás pobre? Precisas que te ofereça uma gilete?», quando lhe aparecia à porta com esta barba vadia -, esse precioso sportinguista de ódios infinitos pelo meu Amor de sempre, que me perdoe, mas voltar à Luz numa tarde de sol, ouvir o Senhor Coluna, José Augusto ou Artur Santos foi chegar a casa depois de uma longa ausência e abraçar todos os meus avós. Não estou geograficamente longe da minha família, mas disperso-me pela minha vida muito mais do que devia. Sinto, por isso, um grande conforto, de uma maneira muito infantil, quando o Senhor Coluna, mirando-me com familiar e autoritária reprovação, me diz precisamente isto: «eu, para ti, tenho um presente... uma gilete».

sexta-feira, 9 de março de 2012

Equilibrismo

Às vezes, temos de manter o equilíbrio. Mesmo quando não sabemos o que temos de fazer. Mesmo que não saibamos que porra estamos a fazer. Equilibrar o que ignoramos é uma manobra de sábio. Por mais ignorantes que sejamos. Por mais que estejamos às escuras.

Gerir o desconhecido, lidar com o indecifrável, eis uma verdadeira aventura. Não sabes o que tens. Não sabes o que esperas. Não fazes ideia de como se joga este jogo. Fechas os olhos e esticas os braços, palmas das mãos para cima, como aquele actor que tinha uma doença nos Dias de Tempestade e que teve de deixar de conduzir. Só que não podes cair para trás, mesmo que apareça a Nicole Kidman vestida apenas com a Braçadeira de Capitão.

O Benfica perdeu com o Porto e foi enganado e isto era uma grande tragédia e a seguir veio o Sporting e fez pior porque perdeu com o Setúbal e foi embaraçoso e depois o Porto era primeiro e o Benfica já não era e então o Benfica ia jogar com o Zénit que era rico e tinha o afilhado do Porto e o Benfica ia perder e ser humilhado e eliminado e seria a desgraça total, mas não perdeu, afinal, e até ganhou e foi por dois e agora está nos quartos-de-final da Liga dos Campeões e a seguir jogava o Sporting, que era muito fraco, e logo contra o Manchester City, que era a equipa mais forte e mais rica mais medonha do mundo, e ia ser uma cabazada das antigas, coitadinho do Sporting, e eu até achei bem, era um passeio no parque, e eu ai que bom, e o Sporting vai e mete o Manchester City no bolso e ganha o jogo e um até foram poucos.

Isto é tudo uma grande confusão para mim. Fico infeliz se me sinto triste e acho que estou errado se me dou ao luxo de ficar contente.

Meto um sorriso :) dou os parabéns ao Sporting - que grande jogo! - e agradeço ao Meu Benfica. Porque existe e porque me faz sentir e vivo e com Ele a minha vida é uma coisa muitíssimo esquisita mas inexplicavelmente boa.

quinta-feira, 8 de março de 2012

«O Benfica e o 'sistema'»

«Talvez o Benfica não queira afinal um sistema justo, mas apenas um sistema protector. A verdade, porém, é que, seja por uma razão, seja por outra, o Benfica nunca vai conseguir impor o contra-ciclo se se dispuser a alimentar este ‘jogo de sombras’

Nunca pensei dizer isto, mas o texto de Rui Santos de hoje no Record é um bom texto. Claro, simples, lúcido. Em não muitas palavras, analisa-se o apoio do Benfica a Fernando Gomes, a bipolaridade do poder no futebol (com centro claramente no Dragão e o Benfica a correr atrás do prejuízo) e a negociação dos direitos televisivos com a Olivedesportos enquanto “momento” decisivo na definição do Benfica neste tabuleiro: com eles, por interesse; ou contra eles, ainda que exposto a consequências negativas. A frase que escolhi sintetiza aquilo que penso sobre o assunto: recuperar a hegemonia no futebol português não pode passar pelo recurso ao mesmo modus operandi que tão bem caracteriza e distingue “o adversário”. Antes derrotado e honrado.

ReActualização da tabela de salvação

1) Manchester City, 5
2) Zénit S. Petersburgo, 3
3) PSV Eindhoven, 2
4) Besiktas, 0,5
5) Shalke ‘04, 0
6) Rangers, 0
7) Lyon, 0
8) Inter, 0
9) Atlético de Madrid, 0
10) Lázio, 0
Manchester City 0
11) xxxxx, -180

Eis o quadro com o Top 10 dos clubes que mais me repugnam para lá da nossa fronteira, agora com a pontuação actualizada. Atribuí meio ponto ao Besiktas. Parecendo que não, a equipa de companhia tem-nos recebido com má vontade e, assim, uma vez sem exemplo, dou alguma importância ao facto de os terríveis turcos os terem posto fora. É uma espécie de meio ponto honoris causa.

Para quem não sabe a origem desta tabela, fica aqui a explicação. O texto é mais longo do que este de hoje, logo, é menos entusiasmante para a esmagadora maioria dos meus caros leitores. Mas não vou repetir-me, sintetizando o que é bastante óbvio. Destaco a liderança isolada da tabela, com o Manchester City a assumir-se como grande favorito a "menos mau dos piores de todos" – o mesmo Manchester City que hoje pode dar um passo importante rumo à luz do dia, saindo deste buraco obscuro que é o saquinho de nojo que trago no coração.

Conseguirão os citizens pontuar? Aceitam-se palpites.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Fleumaticativatematicamente

Terça-feira da semana passada, fui comer umas favinhas com chouriço e entrecosto ali a um restaurante na Rua dos Bacalhoeiros que é o Fernando. Uma pequena maravilha aquelas favas, a fazer lembrar as que a minha mãe me fazia. Não sei por que menciono o assunto, mas suspeito que seja por estar cheio de fome. Quando tenho fome e estou a escrever, torna-se inevitável: falo do prato que verdadeiramente me apetece. As favas com entrecosto são um cozinhado especial por várias razões: dos coentros ao chouriço, passando pelos ingredientes que dão nome ao prato, há todo um pequeno cosmos de elementos que me sugerem paixão – pelos sabores – e fleuma – pela maneira especial como gosto de comer as favas e pela única forma de digerir o ingerido: fleumaticamente.

Paixão e fleuma, coentros e chouriços. Meus Deus, como a gastronomia é parecida com o futebol. Depois de quase duas horas de fervorosa paixão, que foram o culminar de três semanas de sonos agitados e incompletos, dou, finalmente, por mim todo eu fleumático. Vou dizer “fleuma” e derivados até ao fim do texto. Gosto. Fleuma. Parece que aprendi uma palavra nova. Uma palavra fleumativa. Estas semanas talvez me tenham tirado alguns anos de vida. Mas hoje não é dia de pensar nisso. Hoje o mundo está em ordem. E temos tempo. E está sol. E calor. Isto é um encanto.

Pego n’ O Jogo e vou directo ao assunto: penúltima página. Há alguém neste jornal com uma profunda tara por rabos anormalmente grandes. Não sei que diga. Bom, passemos à última página. Oh, que maravilha… o José Manuel Ribeiro parece desapontado com o seu Zénit. Noto aqui um tom amarguinho, um ligeiro engasgo. O José Manuel Ribeiro não é um mau tipo. Mas é demasiado transparente. No fundo, toda a sua crónica podia ser resumida a «filhos da mãe, ainda não foi desta que acabaram». É verdade, José. Nem com o vosso mastronso em campo, a mandar chouriços para o terceiro anel, vocês conseguiram segurar a preciosa vantagem. É uma pena.

N’ A Bola, o inqualificável Eduardo Barroso lambe as mãozinhas depois do pequeno manjar: o Porto ganhou ao Benfica. Ai, que bom, Eduardo! Parabéns, Eduardo! Aparentemente, nem o jogaço de sábado tirou a fleuma ao Eduardo. Espirituoso como poucos, e sempre sob a capa do sportinguista que é apenas e só do «seu querido Sporting», Eduardo Barroso deixa-se apanhar, aqui e ali, lambão e sorridente, ainda a digerir o magnífico feito do seu anjo vingador. Não viu a Liga dos Campeões e ainda bem, que não queremos apoquentá-lo com provas que não dizem, nunca disseram e provavelmente nunca dirão respeito ao seu clube. Um arrotinho, Eduardo, vá lá, que isso até lhe faz mal.

Que bonito dia. Leio o José António Saraiva e não consigo segurar um sorriso cândido na parte em que diz «tive logo [na lesão de Rodrigo na Rússia] a percepção de que a sorte para o Benfica estava a mudar». É extraordinário como certas pessoas “têm logo” estas percepções. Encanta-me sabê-lo.

Está mesmo calor, parece Primavera. Não me apetece trabalhar. Apetece-me, isso sim, ir para uma esplanada tirar apontamentos acerca dos nossos potenciais adversários nos quartos-de-final da Liga dos Campeões. Quem é que patrocina isto? É a Heineken? Pode ser com Heineken, então. Não me apetece ser esquisito. E, no fim, saio daqui e vou direitinho ao Fernando.

terça-feira, 6 de março de 2012

Era supersticioso mas já não sou, dava-me azar

Hoje, quem me visse atravessando Alfama, entrando em Santa Apolónia, viajando no metro, trocando no Marquês e saindo em Picoas, diria «este homem não é do Benfica! Este homem vai é ver a bola na Bica!». Não trago nem um sinal de encarnado, uma demonstração, um indício, uma denúncia, uma pista: nada! Tudo em mim é neutro.

Antes do jogo de sexta, ouvi uns rumores que davam conta de macumbas e feitiços e voodoos e pais de santo e santerias e galinhas pretas, olhos de boi, dentes de galo, pés de cavalo-marinho e penas de lagarto, tudo junto e misturado em sangue de cabra velha, deixado a coalhar ao relento em noites de lua cheia, de maneira a prejudicar o Benfica, o Jorge Jesus, o Rodrigo, o Vieira, o Cardozo, o Artur e o Luisão. Pensei para comigo «desperdício de esforço: bastava um Pedro Proença, um Emerson e uma bola e a coisa fazia-se». Quando o Hulk fez o golo logo a abrir perante a passividade daquela alminha, pensei «eu sabia»; quando o Proença acabou o trabalhinho já perto do final, voltei a pensar «eu não disse?».

Houve, porém, um período do jogo que me devolveu à saudável normalidade da superstição e da mezinha: depois de estar a perder, o Benfica deu a volta á situação, fez-se homem, fez-se guerreiro, fez-se vencedor, levou tudo à frente, encostou o adversário, deu um murro na mesa e a seguir virou-a de pernas para o ar. Cardozo marcou de cabeça e, durante uns minutos, fomos campeões não só de Portugal, como de toda a parte, do mundo inteiro! Naquele instante, nada, ninguém, nenhuma equipa era melhor ou mais forte do que nós. Que orgulho. Foi glória... mas demasiado efémera.

Porque então o Aimar caiu, o Witsel caiu, o Garay caiu e eu lembrei-me do Magnólia e das pragas do Egipto. Eles caíam, caíam, caíam, os sapos e o Benfica, ia tudo caindo numa trágica exibição de desamparo e desordem. Percebi que a situação era sobrenatural e não física – muito menos técnico-táctica. Tomei decisões, então, e tomei providências, hoje.

O raciocínio foi simples: se isto é tudo metafísica e quinquilharia de bruxedo, o segredo está na omissão superstição (por mais que isso seja, em si, supersticioso – mas não compliquemos, não vamos agora entrar numa espiral de paradoxos). Os ténis da sorte ficaram em casa, ao lado dos chinelos Cesária Évora. Os boxers são azuis, tal como as meias. As botas calcei-as à estreia em jogos do Benfica. A t-shirt é cinzenta, a camisola é cinzenta, a parka hipster é preta e a écharpe é profundamente gay. Pareço tudo, menos um Benfiquista. Faço qualquer coisa para manter o meu Clube a salvo do mau-olhado.

Um momento eterno

Tínhamos acabado de entrar depois da desforra de cigarros à entrada do prédio durante o intervalo (é proibido fumar na Casa do Benfica do Porto). As minis da primeira parte começavam, entretanto, a acumular-se perigosa, teimosa e nervosamente ao fundo da barriga. Subimos com dois objectivos: fazer xixi, primeiro, e ganhar o jogo, logo a seguir. O WC estava ocupado. Aguardámos. Passaram uns minutos, estávamos por cima. O WC fica desocupado. Gentilmente, cedo a minha vez ao Norberto Alberto Roberto Gilberto. Ele agradece e é falta! É falta, boi! E ele marca. Alguém se prepara para bater o livre e eu, do fundo da sala, suspeito que é o Gaitán, mas não posso precisar, preferia que fosse o Aimar, «ó Humberto, olha que é livre, despacha-te, pá!» e ele bate a bola, ele puxa o autoclismo, o Cardozo cabeceia, eu salto, toda a gente salta, toda a gente grita, «é goooooooolllllooooooo!!!!», ele sai do WC a correr, festejamos aos pulos, ele põe-me no chão, eu penso «what’da fuck?», está tudo aos gritos, eu entro no WC e, ainda com um ruído ensurdecedor, dou início àquela que foi, de longe, a melhor, mais orgulhosa e mais sorridente mijadela de toda a minha vida.

segunda-feira, 5 de março de 2012

“Incha, cabeçudo, incha!”

A frase não é minha – ao nível da criatividade não chego a tanto. É de um amigo portista que teve a amabilidade de ma enviar por SMS. Várias vezes. Portanto, aos potenciais interessados: não percam tempo a repeti-la.

Na sexta-feira à noite e durante o dia de sábado, foram vários os que carinhosamente me solicitaram a atenção e a caridade para pérolas como «então, estás recuperado do enrabanço?». Não, não estou. A única coisa que me consola é poder ter pena de todos vocês. Não posso deixar de sentir uma certa tristeza compassiva para com tanta euforia esbanjada numa coisinha tão encardida, tão suja. No fundo, impressiona-me que alguns portistas vibrem tanto com – perdoem-me o termo – “vitórias à Porto”. Esperava mais de vocês.

Devo dizer que ver um jogo na Casa do Benfica do Porto é, ao nível da expressão e da ideologia, em tudo semelhante a assistir ao desafio no terceiro anel. O índice de putaquepariu é elevadíssimo e o primeiro stock de caralhada de certeza que se esgota ainda antes do quarto-de-hora. Era capaz de jurar que o senhor – não lhe fiquei com o nome, mas poderia perfeitamente chamar-se Armindo – que o senhor Armindo encomendou várias remessas dessa sublime matéria ao longo dos 90 minutos. E digo-o com toda a certeza porque quando, aos 86 minutos, Pedro Proença apontou para o meio do campo, todos os presentes – mulheres e crianças, velhos e novos, sóbrios e nós – tinham ainda muito disso para usar. Mais: quando o amarelo lhe saiu do bolso para admoestar Helton já nos descontos, houve um velhinho ao canto do balcão que lhe sugeriu com nobreza e amizade que metesse – e passo a citar – «o caralho do cartão nessa peida magrinha, ó meu ordinário». Notem como existe aqui um lado cuidadoso, dedicado e atento: «essa peida magrinha». Pedro, cuide de si: peça para trocar as pegas por tickets restaurante.

Isto agora não tem nada a ver com bola, mas o drama do peso e da silhueta foi transversal às várias realidades (e aproximações) em que a semana foi pródiga. Imaginem vocês que um cretino teve mesmo o desplante de gritar ao Manel Cruz, em pleno Sá da Bandeira, «estás magro!» no final do concerto de Supernada – ao invés de um bem mais justo «és grande!». A verdade é que me pareceu, na altura, mais importante demonstrar a minha preocupação em vez da minha admiração. Porventura, fui inspirado pelo velhinho ao canto do balcão, umas horas antes.

A Casa do Benfica do Porto é semelhante ao terceiro anel em termos do vernáculo, mas apresenta claras vantagens ao nível da preparação do mesmo. Isto acontece por dois motivos: 1) porque há minis Sagres com álcool; 2) porque estas são a 60 cêntimos a peça. Se o jogo durasse mais meia-hora, ver-me-ia obrigado a perguntar o resultado a alguém no dia seguinte. Ou a responder às SMS com «mas afinal quanto é que isso ficou, ó meu enormíssimo néscio e iletrado plebeu amoral?».

Se compararmos os dias, recorrendo ao carbono 14 e às recordações de vários amigos, constatamos que sábado foi claramente um dia melhor do que sexta-feira. À tarde, o concerto – obrigado por perguntarem – correu tão bem que nem me lembrei, durante aqueles 50 minutos, que tínhamos arruinado toda a época da melhor equipa do Benfica dos últimos largos anos em hora e meia, havia menos de 24 horas. Ou, se me ocorreu, não foram mais de seis ou sete vezes e isto sempre entre músicas e só quando olhava para os sorrisos sinistros em dezenas de jovens rostos provavelmente portistas. Então pensava «não é que vos odeie, o que sinto é o impulso de vos ofender – mas ainda bem que vieram» e continuava, dizendo para mim «derrotado mas orgulhoso!».

Mais tarde, jantando com músicos e nossas senhoras, constatei a extrema utilidade de conservar uma espécie de rival decrépito. Animar não anima, mas reconforta um pouco e, sobretudo, dissuade a comunicação entre as partes nos dias que se seguem, prevenindo os mais que prováveis desfechos sangrentos. O bónus foi assistir ao jogo em excelente companhia e dizer com toda a confiança «reparem no nome do guarda-redes: aposto que defende o penalty». Meio minuto mais tarde, pedi «um Jameson, faz favor, que isto merece ser sublinhado».

sexta-feira, 2 de março de 2012

Dia #2,5

A contagem decrescente entra naquela fase "isto está mesmo quase a acontecer". Faltam vinte horas para o jogo, mais minuto, menos minuto. Há pouco, um amigo portista ligou-me com preocupação e cuidados "tu no concerto não mandes bocas sobre o jogo, há aí gajos que são doidos". Descansei-o "isso não faz o meu género. A não ser que ganhemos por mais de quatro".

Momentos mais tarde, estava nos Clérigos a conversar com um super dragão. É um pouco assustador quando estás a falar com alguém num registo quase cúmplice, a um nível de civilidade exemplar, e, em alguns momentos, notas um esgar que te fulmina com a seguinte mensagem "às vezes olho para ti e apetece-me cortar-te ao meio, de alto a baixo, como os samurais fazem às pessoas" enquanto diz "se perdermos, fico fodido".

Inspirador. Minutos antes, rodeado de portistas rodeando superbocks, faziam-me promessas. Que me lubrificavam com decapante. Para quê? Para a "enrabadela a frio com areia". Isto tudo, usando um "preservativo de lixa grossa". Tomei nota. Aliás, tomei nota e pedi-lhe o número de telefone, "não vás tu precisar das instruções de volta". Houve um momento de embaraço colectivo. As minhas notas e o meu sorriso geraram desconfortos e hesitação. A custo, deu-me o número. Despediu-se logo de seguida.

Acabámos a ouvir Pixies na Tendinha, eu e o outro super dragão. No início da noite, comi uns cachorrinhos divinais numa tasca chamada Gazela e lembrei-me dos Capitão Fausto com um sorriso que roçou a ingenuidade.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Dia #2

Aproveitei para caminhar e fi-lo com satisfação e parcimónia ao longo da Avenida da Boavista. O velho Bessa ficara para trás e a monumental Casa da Música, essa gigantesca pedra num charco de betão, erguia-se ao fundo como um destino. Mais à frente, a mais feia e falsa estátua do plantea - que me recuso, por pudor, a descrever.

Na Baixa, encontrei-me com um bom amigo. Homem do Sul, conserva ainda o sotaque algarvio, mesmo depois de meses de exposição ao apetitoso tornear das palavras ao jeito do Porto. Falam como se esculpissem curvas suaves no português. As pontas das sílabas transformam-se em anéis soltos de longos cabelos encaracolados.

Ouvir o traço forte algarvio sossegou-me: na noite anterior houve uma revelação que me abalou. "Vocês em Lisboa têm sotaque". Disseram-mo sem maldade, mas também sem meiguice. Não me insurgi, porém ainda me custa aceitar esta nova percepção. Assim, o falar algarvio reconfortou-me devolvendo-me a impressão de que falo de modo neutro e imaculado.

Descemos à Ribeira e pedi "um fino, por favor", ocultando assim a minha procedência. O empregado, brasileiro, respondeu com indiferença "imperial não tem, só tem príncipe, pode ser?". Com desapontamento, disse que sim, pode ser.

À mesa falámos de música, de concertos e de discos. Ele, sportinguista sem gosto pelo futebol, ainda perguntou com simpatia "então e não vais ver o jogo amanhã?" mas não creio que o interesse fosse genuíno. Tratou-se de uma pequena gentileza. "Vou, claro. Já está tudo programado".

De um canto da esplanada, uma jovem universitária levantou-se de entre os seus pares e dirigiu-se a nós. Estou a fumar mas preparo automaticamente a resposta "não tenho, não fumo". "Peço desculpa" diz com educação "tu não és o Diego Armés?". E eu sou, sim, sou mesmo e estou surpreendido por isso. "Adoro o teu trabalho, adoro". A sensação é semelhante à do golo: um espanto feliz anula-me o raciocínio e respondo como posso - com um sorriso trapalhão. Este pequeno gesto de corajosa gentileza faz o dia valer a pena. E é então que o momento se imortaliza: "grande Benfiquista! Também sou" exclama com visível orgulho. "Amanhã damos cabo deles".

Foi-se embora e começou a chover.